A fossa sem fundo do sionismo de esquerda – Parte 2

04/02/2022
Por: Tufy Kairuz

I never saw a wild thing sorry for itself (Eu nunca vi uma coisa selvagem com pena de si mesma).
T.H. Lawrence

Todavia, vamos ao que interessa. Este texto é uma resposta ao sionista de “esquerda” Mauro Nadvorny (Brasil 247, edição de 29 de janeiro de 2022), que reside em Israel. Será que é aquela esquerda trabalhista responsável pelas guerras de agressão e da consolidação do estado sionista? Ou será aquela esquerda dos esquadrões da morte terroristas do Haganah que, talvez, bradassem “Abaixo o imperialismo!” enquanto assassinavam civis indefesos palestinos? Considerando que a “direita” sionista só chega de fato ao poder em Israel em 1977 (Menahem Béguin, pela então coligação Likud), sem dúvida uma tradição “progressista” de respeito.

Como de hábito, tenho dificuldade de pronunciar certos nomes e, mais ainda e quase sempre, os sobrenomes dos “semitas” europeus. Isto mesmo sendo membro de uma linhagem que habita as montanhas ao redor do Vale do Qadisha, no atual Líbano, há 600 anos e, sabe-se Deus, quantos séculos mais nas terras sírias de onde vieram. Meu sobrenome não é árabe, mas aramaico. Minha família está entre as que falavam aramaico, como língua franca, até o século XIX. Porém, graças ao pacote de mentiras espalhadas por sionistas, cristãos e judeus, sou obrigado a entrar na pantomima sionista e, provavelmente, vou ser acusado de “antissemitismo” por falantes de ídiche, ladino, português etc. Os mesmos que, para enganar a si e o resto do mundo, inventaram um “hebraico sionista”.

Recordo o que li em um relato de um patrício árabe, de fé judaica, sobre a formação do bairro étnico do Saara, no Rio de Janeiro, “convertido” ao sionismo: “nós nem sabíamos da existência de ‘irmãos’ judeus na Europa.” Sim, como você, habib, populações inteiras no Levante (Bilad al-Sham), muito antes da era Google, ignoravam solenemente a existência de gente tão “ilustre” que nunca, em tempo nenhum, passou nem perto da Palestina. É o genuíno “retorno dos que nunca lá estiveram”.

Pois é, “companheiro”, o “antissemitismo”, conforme você desonestamente designa, “une a esquerda e a direita”. Por coincidência, o sionismo também uniu a esquerda e a direita. Lembre-se, o “antissemita”, como dizia Theodor Herlz, bebericando slivovitz em Viena, era o maior aliado do sionista. Como você vê, “antissemitas” e “sionistas” sempre foram como “pão e manteiga”, como diria Forrest Gump.

Não estou aqui para defender ninguém, mas os exageros e platitudes cometidos por alguns, que dizem defender a Causa Palestina é, em grande parte, resultado de mais de 100 anos de mentiras espalhadas pelo sionismo, que fez e faz de tudo para tornar uma ideologia colonialista um sinônimo de “judaísmo”. Se uma mentira repetida mil vezes se torna verdade ou se para manter uma mentira é necessário inventar mais mil, não é surpresa que muitos caiam nas armadilhas plantadas ao longo do caminho, pelo sionismo, em mais de um século.

Obviamente, não apoio nem penso que a lavagem cerebral coletiva promovida pelo sionismo justifique ataques rasteiros apenas porque o judaísmo, em geral, se deixou sequestrar pelo sionismo. Eu, e alguns judeus, ao contrário dos sionistas, achamos que sionismo e judaísmo são princípios antagônicos.

Uma coisa é certa: existe, sim, uma “nacionalidade” judaica! Aliás, caso haja dúvida da existência desta jabuticaba identitária, basta perguntar aos palestinos. O autor fala em táticas habituais e modus operandi, assunto que acredito seja ele um conhecedor, pois é impossível ser sionista e não ser treinado na retórica, que, desesperadamente, tenta manter o projeto sionista insulado de críticas usando estratégias fascistas.

Sobre a “nacionalidade judaica”, uma das táticas mais eficazes do sionismo é o “fato consumado”. Portanto, os devaneios identitários de um grupo de europeus judeus, no século XIX, o projeto colonial maquiavélico e um estado artificial fundado na limpeza étnica e nas guerras, em pleno século XX, resultaram no surgimento de uma nacionalidade “judaica.” Outrossim, Israel é, certamente, uma aberração, e não apenas antropológica, mas uma aberração completa e, por isso, não consegue silenciar seus críticos.

“Nenhum ‘antissemita’ vai deixar de atacar Israel”. Estranhamente há muitos judeus, alguns bem conhecidos, que criticam Israel. O mais interessante aqui é notar o subconsciente sionista em ação. Segundo ele, não se pode demonstrar solidariedade aos judeus mortos no Holocausto sem fazer juras de amor ao sionismo. De forma análoga, a única maneira de cultivar amizade com os judeus seria viver em um mundo paralelo criado pelo sionismo.

Curiosamente, nunca um cigano (romani) me impôs condições para eu demonstrar minha indignação diante do Porajmos ou condicionou minha solidariedade ao genocídio dos romanis, pelos nazistas, à minha adesão incondicional a uma ideia de “pátria” cigana em terras alheias.

Ademais, o adágio mencionado por ele – “judeu bom é judeu morto” – é mais uma apropriação desonesta pois, até onde sei, foi dita por alguém em relação aos povos nativos na América do Norte. Portanto, se existe algum paralelo com o genocídio imposto aos nativos na América do Norte, este é o da tragédia imposta aos palestinos, como povo originário, roubados, vilipendiados, presos, torturados e mortos. Mas nada que tire o sono do autor do texto, que, imagino, dorme com uma pedra em terras roubadas.

A “percentagem ínfima de judeus, 0,2%”, em relação à população mundial, mencionado pelo autor, não faz jus ao “sucesso” sionista. Você está sendo modesto. Os sionistas não representam todos os judeus, portanto, a relação é ainda bem mais desproporcional. O problema, no entanto, é “qualitativo”, não quantitativo.

Por certo, os sionistas não são imbecis. O problema é o que a narrativa sionista é. Mas convencer alguém de que o projeto sionista foi uma epopeia de “despossuídos” é uma dessas missões impossíveis, mesmo que você seja um “Tom Cruise” sionista. Isso sem mencionar o que é gasto para mantê-lo: caminhões de dinheiro dos contribuintes de países no Ocidente, rios de tinta e toneladas de papel, um mar de sangue e, certamente, montanhas de rolos de filme. Sem dúvida, como afirmou o autor em tela, “um caso sem precedente na História”.

Em mais uma empreitada digna dos “12 Trabalhos de Hércules”, o invasor de consciência levemente pesada dispara que Israel “é um país como qualquer outro”. Certamente não é um “país”, tampouco como qualquer outro, pois um dos poucos paralelos possíveis, como com o seu irmão siamês, o defunto regime do Apartheid na África do Sul, se perdeu na poeira da História. Talvez seja um “estado de espírito”, como “Israel” foi definido pelo facínora e ex-primeiro-ministro Netanyahu. Antes fosse e continuasse sendo.

A “listinha” de coisas “não tão maravilhosas” que por lá existem não vou comentar. Seria redundante. Porém, vamos às “coisas boas”. A lista é longa e grotesca, pois o autor, no auge do desespero e sem nenhum constrangimento aparente, elenca uma mistura de serviços de infraestrutura e alguns serviços de um estado de bem-estar social para justificar a existência de uma colônia em terras roubadas.

Selecionei algumas pérolas, como a existência de eleições livres em um regime de Apartheid. Nenhuma contradição! É preciso comentar? Em seguida, se gaba do maior número de veganos per capita (do mundo) em Israel, o que, convém lembrar, é um hábito que eles possuem em comum com um certo austríaco, naturalizado alemão, que relacionava o veganismo à superioridade racial.

Francamente, “judiciário independente”? “Invenções que beneficiam a humanidade”? Eles tripudiam na ignorância e na alienação de tantos ao redor do mundo. O que lá existe é um aparato de segurança e justiça fascista e as invenções israelenses – muitas, aliás pirateadas dos seus próprios aliados – incluem as tecnologias da tortura, morte e espionagem (cópias piratas de armamentos) testados nos palestinos e exportados para assassinar os que eles dizer serem seus companheiros de infortúnios: negros, pobres, minorias ao redor do planeta. E, diga-se de passagem, são os modelos adotados pelo aparato de segurança brasileiro há décadas, corrupto e apodrecido como ele é.

O sionismo está desmoralizado e moribundo, mesmo entre judeus, e claramente perdendo, diante da opinião pública mundial, a guerra das narrativas e das imagens em highlight, que sustentaram suas teias de mentiras no passado. O autor do texto em questão é apenas e mais um que tenta fugir das mazelas brasileiras, disposto a morar até mesmo na filial do inferno na Terra. Se possuísse algum compromisso, vagamente humano, perceberia que os especialistas israelenses já desmoralizaram as teses que justificam a empreitada sionista, assim como intelectuais e religiosos de origem judaica que vivem no Ocidente e que tiveram suas carreiras destruídas por ousarem desmascarar o sionismo. Esses homens e mulheres, barbaramente perseguidos pelo sionismo, são heróis e gigantes do verdadeiro humanismo judaico. Já o autor e seus asseclas do sionismo de esquerda se contentam à servidão de um regime cruel, desumano, o totalitarismo como modelo que todos devemos temer.

Mas, é claro, não poderia faltar a manipulação do aspecto político. Afinal, é preciso sempre não colocar todos os ovos em uma só cesta. Se o sionismo apostou em uma “besta gateada”, em um páreo de puros-sangues para fazerem seu serviço sujo no Brasil, já passou da hora dos ratos abandonarem o navio do bolsonarismo que afunda.

Por último, meu relato pessoal. Nasci e fui criado em um bairro carioca com imigrantes de várias origens. Lá conviviam portugueses, italianos, espanhóis, árabes (judeus, cristãos e muçulmanos) e outros europeus (cristãos e judeus). Portanto, não preciso justificar nada para criticar o sionismo e manter minha admiração pela tradição judaica. Suas chantagens não me atingem. Tive, sim, não um, mas vários amigos judeus, de origem árabe e europeia (poloneses, russos, alemães etc.). A casa em que passei boa parte da minha infância distava uns 50 metros de uma sinagoga de árabes judeus que, por anos a fio, de Shabat em Shabat, passavam pela minha calçada conversando e cumprimentando meu pai na língua de ambos, o árabe, nenhuma outra. Eram tão árabes como nós e nada, além da religião, tinham em comum com outros judeus (europeus) que frequentavam outras sinagogas no mesmo bairro.

Esse convívio, porém, foi envenenado pelo sionismo e sua propaganda extremista. A vida seguiu, no Brasil e em outros países, e fiz mais amigos judeus, de diversas origens, e colegas, mas, entre nós, com algumas exceções, sempre pairava a sombra nefasta do sionismo, já uma realidade se impondo.

Quanto ao tal sionismo de esquerda, não é nem menos nem mais esquizofrênico que o de direita; é apenas mais hipócrita. Seja lá o lado da trincheira ideológica, a hidra sionista de várias cabeças tem um único objetivo: administrar a ocupação da Palestina e manter lubrificada, com sangue inocente, a sinistra máquina sionista de mentiras, difamações e destruições de reputações.

Tufy Kairuz é historiador, professor, PhD em História pela Universidade York, no Canadá, e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro