Apartheid: a causa da nova rodada de violência na Palestina/Israel

19/05/2021
Por: Fábio Bacila Sahd

A violência atual na Palestina tem como causa primeira a negação básica de direitos do povo palestino, que vive sob soberania do Estado israelense, seja de modo direto ou indireto.

O povo palestino encontra-se sob distintas jurisdições, embora direta ou indiretamente, todos tenham suas vidas e condições determinadas pelo Estado israelense.

A parcela do povo palestino com direito de cidadania em Israel sofre, desde a fundação deste Estado, com um processo sistemático de discriminação, cujo caráter mais óbvio é constituir uma minoria étnica em um Estado que se autointitula “judaico” e, conforme suas leis, está destinado à promoção da autodeterminação somente desse povo.

Tal situação se deteriorou ainda mais diante dos recorrentes discursos de ódio proferidos por lideranças israelenses-judaicas, como o próprio primeiro-ministro e outras figuras do alto escalão, e a partir da emenda da lei básica, em 2018, considerando que o Estado é exclusivamente judaico, negando o reconhecimento de um quinto de sua população, formada por cidadãos palestinos, levando, inclusive, à remoção da língua árabe, ao lado da hebraica, como idioma oficial.

Desse modo, há um tratamento distinto no tocante a direitos e à própria alocação dos recursos públicos, prevalecendo uma situação estrutural de discriminação racial, como consta nos relatórios de inúmeros órgãos, sendo o exemplo mais paradigmático a relatoria produzida pelo guardião designado para monitorar a Convenção Internacional de Supressão da Discriminação Racial.

As violações de direitos humanos são ainda mais evidentes nos ditos Territórios Palestinos Ocupados (Faixa de Gaza e Cisjordânia), que seguem classificados como “territórios ocupados” pelo direito internacional e pelos órgãos que o regem, como a ONU e as cortes internacionais. Seja em Jerusalém Oriental, seja na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza (todos ocupados por Israel, desde 1967), prevalece a impunidade dos crimes praticados contra os palestinos e suas propriedades, que se encontram, ironicamente, em uma situação de vulnerabilidade semelhante àquela vivida pelos europeus de fé judaica durante o nazismo.

Desse modo, para pensar a realidade da ocupação israelense, são válidos os mesmos conceitos acadêmicos usados para o nazismo, como “vida nua” (referindo-se à possibilidade de exercício impune da violência) ou “campo” (locais onde prevalece o Estado de exceção, com as populações não estando protegidas pela lei, logo, tornadas extermináveis).

Também une essas realidades a lógica comum de um Estado étnico, que arroga a somente a uma parcela cidadania e direitos básicos, reservando a outra a discriminação, desproteção, desapropriação e violência, senão extermínio.

Paralelamente aos palestinos cidadãos de Israel e aos moradores originários de Gaza e Cisjordânia, há uma enorme parcela do povo palestino que é constituída de refugiados da guerra de 1948, que estão dispersos tanto pelos TPO quanto pelos países vizinhos e por todos os continentes. Sua situação de refúgio e desapropriação é fruto de uma limpeza étnica promovida naquele ano justamente para garantir que a maioria da população de Israel fosse composta por judeus e não palestinos, e a defesa do caráter judaico do Estado é usada até hoje (embora não tenha validade legal) para tentar justificar a contínua negação de seu direito internacionalmente reconhecido de retorno e restituição.

Desse modo, é a negação de direitos básicos do povo palestino pelo Estado de Israel a causa última da instabilidade e violência generalizada. Ela abrange desde os refugiados palestinos de 1948, até aqueles com cidadania israelense, discriminados abertamente e alvo de violência simbólica e física cada vez mais frequentes, passando, obviamente, por originários de Gaza e Cisjordânia.

Diante dessa situação estrutural de injustiça, é fato óbvio que há manifestações de resistência, tanto violenta quanto pacífica, da parte do povo palestino, sendo seu direito de existir e resistir internacionalmente reconhecidos, pois o direito internacional dos direitos humanos visa a supressão das violações e não sua manutenção. Afinal, como consta no preambulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estes servem para, justamente, evitar que haja sofrimento humano e violência.

Lamentavelmente, a lógica que há décadas rege os eventos na região não é a paz como fruto da justiça, mas a violência e negação sistemática dos direitos mais básicos dos palestinos, pensados como indivíduos e coletividade.

Por fim, desde o começo do novo milênio, cada vez de forma mais difundida as práticas do Estado israelense vêm sendo classificadas como culminando no cometimento do crime internacional de apartheid. Essa definição, longe de estar restrita a observadores interessados e parciais, figura em inúmeros relatórios de direitos humanos, que incluem desde distintos órgãos da ONU até ONGs locais (israelenses e palestinas) e internacionais. É tese, igualmente, difundida na bibliografia especializada sobre o conflito. Retomando a legislação internacional, o apartheid é crime contra a humanidade, que por manter um sistema de negação de direitos básicos, ameaça a paz e segurança internacionais, que é justamente o que estamos testemunhando, mais uma vez.

Fábio Bacila Sahd é historiador, doutor em Ciências Humanas pela USP, professor adjunto da UFMA, autor de livros e artigos sobre Oriente Médio, Palestina, memória e direitos humanos