As modernas formas de silenciar a Causa Palestina no Brasil

18/02/2021
Por: Jeanderson Mafra

No último dia 5 de fevereiro, o Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia decidiu que sua jurisdição alcança os crimes cometidos por Israel na Palestina. Tal decisão surgiu das investigações preliminares dos crimes de guerra cometidos por Israel nos territórios palestinos ocupados, o que coloca o primeiro-ministro Netanyahu, um dos mais sanguinários líderes mundiais, na mira da organização internacional por crimes de lesa humanidade, já que o TPI não julga países, e sim indivíduos.

Netanyahu foi um dos líderes que, ao lado do ultradireitista Orban (Hungria), estiveram na posse do então eleito presidente Jair Bolsonaro, ambos alinhados com os mesmos discursos e mentalidades de Donald Trump (EUA).

A política de extermínio do governo israelense na Palestina tem sido praticada desde sua ocupação, em 1948, com o Plano militar “Dalet”, durante a gestão Ben Gurion, na qual milhares de palestinos foram expulsos de suas terras, assassinados e massacrados por milícias sionistas inescrupulosas que, assim, apressavam uma tragédia irreparável, conhecida como Nakba, a catástrofe palestina.

Foram várias as condenações anteriores a estas mesmas políticas israelenses, praticadas sob o pretexto de “segurança nacional”, sem que, entretanto, Israel as tenha respeitado ou, à luz do Direito Internacional, reconhecido a soberania do Estado da Palestina, conforme as resoluções da ONU neste sentido. De modo que os palestinos seguem suas vidas regidos por leis marciais e toques de recolher; têm suas casas e terras invadidas e sujeitos a uma política de verdadeiro apartheid, especialmente com a nova lei do Estado-Nação, que torna lei o que já era a prática, isto é, cidadania exclusivamente a professantes do judaísmo, por meio da qual os demais habitantes de Israel não-judeus não têm direito à autodeterminação ou são considerados cidadãos de segunda categoria.

Dias antes da decisão do TPI dando-se por jurisdicionado às investigações dos crimes de Israel, ocorreu uma oportuna inciativa do Conselho Federal da OAB, que resultou numa live com a temática “AS MODERNAS FORMAS DE ANTISSEMITISMO E OS DESAFIOS À LEI 7.716/89” (4 de fevereiro). A live versou sobre o holocausto judeu havido quando da 2ª Guerra Mundial e a necessidade urgente que há no Brasil de se combater os sucessivos negacionismos que hoje fazem com que no país se negue tanto os crimes cometidos contra os euro-judeus na Europa quanto a escravidão, a ditadura, o extermínio dos povos indígenas e mesmo a necessidade de vacinação num período pandêmico.

O terraplanismo tupiniquim tem sido, assim, uma sucessão de emulações do nazismo, que tiveram início na campanha eleitoral, com discursos abertos e públicos contra pretos e quilombolas, comparando-os a animais, e de desumanização dos indígenas.

E por falar em desumanizações, foi esta a estratégia de linguagem central que aflorou no Terceiro Reich para justificar à sociedade alemã o extermínio de deficientes físicos, professantes do judaísmo, negros, ciganos, maçons, homossexuais e todos aqueles considerados corpos estranhos no seio da “civilização ariana”, construída pela ideologia de Hitler. Foi a linguagem, como bem notou Victor Klemperer, a força motriz que desembocou na pior carnificina recente no centro da insuspeita alta cultura europeia, que experimentou contra si mesma as práticas sempre dispensadas aos povos subjugados em suas colônias na Ásia, África e nas Américas.

A live da OAB contou com a presença do deputado federal Roberto de Lucena (PODEMOS) que, após falar sobre o Projeto de Lei (PL 4974/2020) de sua autoria, prometeu conclamar todos os demais congressistas “pró-Israel” para a aprovação do mesmo, numa flagrante parcialidade do debate político ali levado a conhecimento, posto que deveria se fundamentar na pluralidade de opiniões e não em algum exclusivismo, seja de que natureza for. Restou evidente a indiferença do deputado frente à Questão Palestina e ao papel do Brasil nesse contexto geopolítico.

Com a participação de alguns representantes da comunidade brasileiro-judaica, dentre eles Daniel Bialsky (CONIB) e a reconhecida professora Monique Goldfeld, se fizeram explanações pontuais sobre o antissemitismo, mas também ficou  perceptível a tendência infradiscursiva de criminalização da agenda pró-Palestina, que seria antissemita, e de cunhar qualquer crítica às políticas de ocupação israelense nas Faixa de Gaza e Cisjordânia como “discurso antissemita” e, assim, associar/equiparar o antissionismo ao antissemitismo.

Um dos participantes mais enfocados nesse propósito, e mesmo destacado para este papel, foi André Lajst (Stand With Us), ex-soldado do exército israelense e um conhecido inimigo da causa da Palestina no Brasil, que não faz muito tempo rasgou a bandeira palestina em Manaus, numa tentativa desesperada de silenciar a fala de acadêmicos apoiadores da solidariedade internacional pró-Palestina na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

O debate contra a ideologia sionista e sua faceta colonizadora não é irresponsável, senão uma discussão produtiva que, inclusive, a dissocia do judaísmo. A Professora Judith Butler (Caminhos Divergentes) é uma das principais pensadoras, junto a Illan Pappe e outras personalidades acadêmicas israelenses, que denunciam o sionismo e suas características desumanas contra a população nativa palestina.

Observou-se na live, por isso, um desvio do debate sobre a memória das vítimas do holocausto judeu e o problema da negação dessa tragédia, conduzindo-o para a busca de inviabilizar no Brasil as críticas contra a ocupação israelense da Palestina e o seviciamento sem trégua de seu povo, doravante cercado num dos maiores campos de concentração a céu aberto do mundo, Gaza. Denunciar tais crimes israelenses seriam as tais “modernas formas de antissemitismo”.

Tal ponderação se faz necessária, especialmente evocando uma importante observação daquele que é uma das maiores vozes da tragédia Palestina, Edward Said, quando este diz que “os palestinos são as vítimas das vítimas”.

Não só o palestino Said, mas Primo Levi, Einstein e tantos outros signatários do judaísmo se mostraram preocupados com o futuro do povo palestino e de seu sofrimento ser causado justamente por aqueles que acabavam de sofrer, nas mãos do nazismo, as mesmas formas de segregação e extermínio.

Acreditamos que uma coisa é a educação sobre uma tragédia, para que ela nunca mais se repita, e outra coisa é tentar usar essa tragédia para impor sanções àqueles que denunciam os mesmos crimes cometidos, agora, contra o povo palestino, que têm os mesmos direitos que outros povos de ter e viver em sua terra ancestral e milenar, a Palestina histórica, destacando que o Brasil reconhece este direito, pois reconhece a Palestina como um estado soberano.

Como a tônica da reunião online foi de como a desumanização é o primeiro passo para uma política de extermínio, chamamos a atenção, de igual modo, que silenciar e tornar nula a Questão Palestina, criminalizando críticas ao governo (e mesmo ao estado, quando forem políticas de estado o problema real) de Israel, que descumpre todas as resoluções da ONU ao ocupar e cometer sucessivos crimes contra uma população que sequer água potável possui, que dirá condições de resistir a uma potência nuclear amparada militarmente pelo Ocidente, é também uma forma de desumanização e com os mesmos objetivos desta debatida no seio da OAB. Como se buscou uma inversão de valores para fazer destes protestos atos “antissemitas”, também podemos afirmar que busca-se uma forma de “desumanizar” o povo palestino e justificar seu extermínio.

No mais, sabemos que a OAB é uma instituição do estado brasileiro alinhada com a inarredável defesa dos Direitos Humanos, o que a torna imune a instrumentalizações como esta ou por qualquer apelo exclusivista, com dupla pauta, uma real e que preocupa a todos nós, e outra dissimulada, que busca a imunização de um estado beligerante, cujos crimes contra outro povo precisam de uma cortina de fumaça para jamais serem apurados e condenados.

Devemos combater e sempre denunciar toda forma de negacionismo, seja do holocausto judeu, seja da ditadura militar de 64, seja das escravidão e limpeza étnica dos povos indígenas e quilombolas, estes ainda em curso. Porém, e justamente por isso, jamais deixaremos de também combater e denunciar a catástrofe do povo palestino, cuja característica visível hoje é a colonização criminosa de suas terras e de vilipêndio de seu povo, numa política deliberada e flagrante de uma potência ocupante, o Estado de Israel, de limpeza e apagamento de suas história e memória.

Jeanderson Mafra é graduado e mestrando em Letras com ênfase em Estudos de Linguagem e Discurso, membro da Sociedade de Cultura Latina do Brasil (MA), escritor e poeta maranhense.