Contra o opressor, só a luta

13/11/2024
Por: Ashjan Sadique Adi

Gostaria de compartilhar uma reflexão sobre uma profunda mudança na minha compreensão de mundo e de suas possibilidades de transformação. Sou psicóloga de formação, doutora em Psicologia Social, mestre em Educação, sempre dedicada aos estudos. Em 2017, iniciando as leituras para meu projeto de doutorado, concomitantemente, iniciei minha militância pela Palestina por meio das redes sociais, dos estudos, de publicação de artigos, a organização de um livro, contato com irmãos e irmãs veteranos da luta nacional palestina no Brasil, palestinos/as, descendentes e brasileiros/as.

A graduação em Psicologia me trouxe uma visão de mundo na qual eu sempre acreditava e sobre a qual conversava com meus amigos: “As pessoas mudam, a mudança é sempre possível, tudo é passível de mudar…”. Mas vamos lá… Será? Quem muda? Em que contexto as pessoas mudam? Como mudam? Por quais razões as pessoas mudam? Por quais desejos? Porque agora, diante de mais de 1 ano de genocídio televisionado na Palestina e nada de efetivo para estagna-lo, estas dúvidas me atravessam.

E para o contexto sionista de Israel, uma certeza: não acredito que os fascistas de lá mudarão. Ou melhor, podem até mudar, mas não com apenas diálogo, diplomacia, educação que leve à conscientização. Isto já não serve para jovens e adultos que matam crianças, torturam jovens, violentam mulheres, estupram homens, assassinam médicos e outros profissionais de saúde, assassinam jornalistas, no que é a maior matança histórica desta categoria, assim como da infância, destruindo casas, hospitais, creches, escolas, mesquitas, igrejas, abrigos… e no final, com a mais asquerosa perversidade, ainda riem e zombam de tudo isso.

Me desculpem os “humanistas”, mas a apologia ao diálogo puro e simples só contribui para nossa morte; não acredito mais nele isoladamente. Você vai dialogar com um estuprador, com um violador, com um agressor, com um assassino? Com quem matou teus filhos? Com quem matou mulheres e brincam com suas lingeries? Com soldadas que fazem vídeos dançando sobre escombros? Com quem recebeu desde sua infância uma (des)educação ensinada pelos professores de que os palestinos são os invasores, que eles devem ser mortos, que eles são os inimigos a exterminar? E passados 15 anos de escolarização, estes mesmos alunos, agora jovens com 18 anos, vão servir às forças armadas da ocupação e farão o quê?

Bom, vocês sabem, não preciso repetir, só de transcrever já me dói. Mas eu não acredito na reversão da humanidade dessa gente, nem em seu arrependimento; os palestinos são monstros para eles, mas a monstruosidade é a essência constituinte dos sionistas, que aprendem desde a infância a odiar e a temer, e o medo é importante elemento para a coesão da identidade nacional israelense, faz pouco construída para ser tornar um estado supremacista na Palestina.

E há quem vá dizer: ah, mas tem os judeus, israelenses antissionistas… Sim, eu sei que existem, e agradeço o apoio destes, mas quantitativamente são 1, 2, 3%, uma insignificativa parcela, sem força para mudar a história, para interferir no rumo da sociedade israelense armada até os dentes, uma minoria contra a grande maioria com sangue nos olhos, armas na mão, com um medo coletivo e ancestral do holocausto euro-judeu e um sentimento profundo de únicas e eternas vítimas do mundo, se apossando do monopólio da dor, como se só eles a sentissem. Mas eu também conheço muito bem, e muito bem, a dor dos meus irmãos e irmãs palestinos que estão lá, dos meus familiares e daqueles que nem conheço, mas sei o que passam.

Eu sinto a fome das crianças, a sede dos animais, o choro das mulheres, o pavor dos homens, a tristeza de todos, seus traumas. Isso me chega todos os dias, todas as horas, há 1 ano, 1 mês e 5 dias, ininterruptamente, inclusive nestes minutos em que escrevo. Conheço bem a dor de nossa Nakba contínua, nossa dor histórica, ancestral, coletiva, étnica, de 7 décadas. Toda uma dor atravessando minha rotina, os estudos para concurso, os cuidados com a vida, os compromissos com a família, com meus pais, o cotidiano ao lado de meu companheiro e meu cão.

Às vezes olho para meu prato, na hora do almoço ou de qualquer refeição, e lembro da fome dos palestinos e começo a chorar. Coloco água num copo e lembro da sede deles. Sinto vergonha do meu conforto, do meu alimento, da minha água, enquanto meu povo é massacrado e exterminado, por bombas, armas, sede ou fome. É avassalador! É difícil demais!

Porque é sangue do meu sangue, é meu povo, e meu corpo, minhas mente e alma estão com eles dia e noite. E diariamente recebo informações das violências, dos mais diversos tipos, de ataques a humilhações. E lembro do menininho tremendo de pavor, da menininha aos prantos pedindo pão, da irmã carregando a irmã um pouco menor, da mãe abraçando seu filho morto, dos homens nus, de olhos vendados e braços amarrados. Do homem que foi estuprado, depois levado ao hospital para voltar a ser preso. Do cachorro que foi lançado do penhasco por um soldado que ria e ria.

Não perdoarei toda essa violência e nunca esquecerei, porque há quem esquece para se alienar e se confortar; eu vou sempre lembrar. E como teoriza Frantz Ibrahim Fanon, só a violência vingada e executada contra o opressor libertará o oprimido e curará sua dor. E mesmo Freud não subestimava o instinto de agressividade do ser humano e sua pulsão de morte mais pungente que o amor, que só viria com a educação ou a repressão da sociedade.

Portanto, não acredito na mudança do sionismo a não ser pela luta, pela resistência e pela punição de todos os perpetradores de seus crimes, sem exceção, sem anistia a nenhum opressor, desde os generais que estão à mesa com seus mapas, desde aqueles que lançam bombas remotamente, desde os que fazem o serviço de terror na terra, no mar ou no ar. O que queremos é justiça. A justiça que bradamos aos sete ventos, mas que tão poucos agem para que se efetive. Dos apáticos, indiferentes, inconscientes, acomodados, conciliadores, agressores, nada esperamos. O que esperar? A justiça virá pelos justos, fortes, destemidos, aguerridos, em comunhão.

Somente assim a Palestina e o mundo terão paz. Já doeu demais, há 77 anos que dói demais. Até quando?! Perdão, mas conciliação, jamais!

Ashjan Sadique Adi é doutora em psicologia pela USP, mestre em educação pela UFMS e secretária de Assuntos Acadêmicos da FEPAL.