De Pequim, “com amor”: o fim da “guerra fria” entre Arábia Saudita e Irã

28/03/2023
Por: Tufy Kairuz

Consideramos a Causa Palestina a maior das causas árabes e a Palestina é mais valiosa para nós do que o petróleo, pois o petróleo é um apenas instrumento que pode ser usado como arma de guerra, se necessário, mas o retorno do povo palestino à sua pátria deve ocorrer mesmo que isso custe a vida de todos nós.

Faisal bin Abdulaziz Al Saud, Soberano do Reino da Arábia Saudita (1905-1975)

Nem a nação islâmica iraniana, nem qualquer muçulmano, nem mesmo nenhum ser humano de mente aberta reconhecerá Israel. Nosso apoio aos nossos irmãos árabes e palestinos é eterno.

Ruhollah Khomeini, Líder Supremo da República Islâmica do Irã (1900-1989)

O Reino da Arábia Saudita e a República Islâmica do Irã restauraram relações diplomáticas, em Pequim, suspensas desde 2016, com mediação da República Popular da China. A rivalidade entre os dois países, “pesos-pesados” geopolíticos naquela região, e além, combina disputas do passado e contemporâneas. Algumas reais e muitas inventadas ao sabor de interesses de seus respectivos governantes e manipulados por interesses daqueles com ambições naquelas regiões.

Certas rivalidades merecem atenção, outras nem são dignas de menção. De qualquer modo, as principais tomaram forma em torno de rivalidades étnicas e sectárias, levando-se em consideração que árabes e persas compartilham uma história em comum pelo menos desde o século VII.

No que se refere às divisões sectárias, a divisão entre sunitas e xiitas não tem relação com etnicidade, pois a fórmula surrada persas=xiitas e árabes=sunitas é falaciosa, pois há árabes xiitas e persas sunitas. Todavia, durante o século XX, as discórdias eventuais entre os dois países remontam à época do Xá, portanto, muito antes da Revolução Islâmica, em 1979. Outrossim, é preciso ressaltar que ambos os países, a partir da Segunda Guerra Mundial, se tornaram aliados dos Estados Unidos e de seus interesses na região. Registre-se como exceção no período o governo nacionalista de Mohammad Mosaddegh, no início da década de 1950, no Irã, derrubado por americanos e ingleses. Dessa maneira, a relação entre os dois países se condicionou mais em relação ao posicionamento de cada um frente aos Estados Unidos que por eventuais querelas entre os dois. Por sua vez, os interesses dos Estados Unidos na região, invariavelmente, se condicionavam aos interesses do projeto sionista.

No entanto, após a Revolução, em 1979, o Irã adota uma política de expansão de seus interesses geopolíticos, dando continuidade a uma estratégia do tempo do Xá, porém, com mais assertividade no que tange às alianças e proteção às populações árabes xiitas. Por certo, tais políticas se chocam em maior escala com os interesses dos Estados Unidos/sionistas e em menor escala com os da Arábia Saudita em áreas sensíveis, como Golfo Pérsico, Líbano, Iraque, Síria e Iêmen. De forma análoga e igualmente significativa, se desdobra no campo religioso em confrontos durante o Hajj (peregrinação a Meca, na Arábia Saudita) e na relação das autoridades sauditas com a minoria xiita nas regiões sauditas do Golfo Pérsico.

Avançando no tempo, o acordo mediado pela China é altamente significativo em vários aspectos. Para começar, envolve duas potências regionais com peso demográfico, militar, político e econômico consideráveis. Também é preciso ressaltar o imenso capital simbólico (religioso-sectário) de ambos os países. A Arábia Saudita, como guardiã dos Lugares Santos (Meca e Medina) e bastião do sunismo, e o Irã desempenhando um papel semelhante junto às populações xiitas.  Sendo assim, ambos, Arábia Saudita e Irã, desfrutam de uma influência considerável nos anseios, na devoção e nas esperanças de quase dois bilhões de seres humanos espalhados por todo o planeta.

Ademais, um observador atento iria perceber que estas duas potências regionais – a terceira seria a Turquia, cada vez menos secular e kemalista – são estados-nações politicamente fundamentados na religião. Por isso, não deixa de ser emblemático que a performance, de modo geral, de ambos, destarte suas diferenças, tenha superado em muito a dos estados seculares que adotaram modelos ocidentais.

Aqui um ponto de inflexão e reflexão. Certamente para muitos, os modelos iraniano e saudita não são ideais. Notadamente, na diáspora, no Ocidente, tais regimes são alvos de críticas e condenações. Contudo, há perguntas que já nascem retóricas. Uma delas seria sobre a eficiência dos regimes seculares da região no período pós-independência vis-à-vis à consolidação da democracia, soberania, estabilidade política e econômica e, principalmente, no combate ao sionismo.

A resposta é tragicamente óbvia. Alguns países árabes se tornaram pacientes, sem perspectiva de alta, em uma UTI que os mantém vivos apenas respirando com a ajuda de aparelhos. Portanto, certas discussões, com direito a “lágrimas de crocodilo” e debates ocos entre “polianas” sobre as razões pelas quais os estados árabes que adotaram modelos seculares, e até progressistas (mas autoritários), não se tornaram estados escandinavos, são boas apenas para o mundo do “não-lugar” da internet.

No mundo real, além da internet e dos pseudo-especialistas, a realidade das populações daquelas regiões é um circo dos horrores, onde são encenadas intervenções estrangeiras, em virtude da fraqueza e desunião dos governos locais, economias devastadas pela corrupção e expostas a ataques externos, desigualdade brutal e forças armadas mais preocupadas em reprimir a população e proteger os governantes do que combater inimigos externos. Além disso, assistimos, nos últimos anos, a guerras civis e um êxodo transformado em tragédia humanitária em alguns países da região.

Os “idiotas da objetividade”, como dizia Nelson Rodrigues, retrucariam de imediato argumentando que o mundo da Arábia Saudita e do Irã não é muito diferente. Porém, a “vizinha gorda e patusca”, outra personagem de Nelson Rodrigues, argumentaria, com a lógica do “óbvio ululante”, que os dois estados “teocráticos” demonstraram, ao longo do tempo, estabilidade, artigo raro na região, solidez no aparato estatal e conseguiram manter seus respectivos países livres de intervenções estrangeiras. Isto só para começar! Ao contrário, o Irã já demonstrou em diversas ocasiões aos seus inimigos que é, na pior das hipóteses, um “osso duro de roer” ou, na linguagem dos “especialistas”, logrou criar uma política de dissuasão capaz de manter, até aqui, seus poderosos inimigos em xeque ao invés de se tornar um destino habitual para exércitos invasores, mesmo após décadas de sanções selvagens, às quais a maioria das nações dobrariam os joelhos em submissão.

A Arábia Saudita é um caso mais complexo e sutil. Sob a sombra de um pacto firmado com os Estados Unidos, de ”petróleo” em troca de “segurança”, na fundação do estado saudita, em 1933, os sauditas conseguiram manter uma posição independente em relação às causas árabes e dos palestinos. Para recordar, participaram ativamente, com recursos financeiros e tropas, inclusive, nos conflitos contra o inimigo sionista. É verdade que os bolsos largos dos sauditas já financiaram causas de gosto duvidoso, mas “rials sauditas” e “dólares” sempre fluíram em profusão para governantes árabes, assim como para a diáspora, e muitos, como é de conhecimento de todos, se aproveitaram e se aproveitam da proverbial generosidade saudita.

Seria oportuno lembrar também que os sauditas lideram, em 1973, o embargo do petróleo que colocou o Ocidente, e principalmente seu aliado, os Estados Unidos, de joelhos. Tal medida cobrou um tributo de sangue a Faisal bin Abdulaziz al-Saud, monarca transformado em mártir, sabidamente devotado às causas árabes e palestina em particular, pelas mãos de um membro de sua família cooptado pelos serviços de Inteligência de um certo aliado da Arábia Saudita, devidamente executado com uma espada sem-fio como lembrete ao traidores e seus mandantes.

Os sauditas, outrossim, se opuseram à invasão do Iraque, em 2003, pela “coalizão” liderada pelos Estados Unidos e, apesar dos altos e baixos das relações entre sauditas e palestinos, recentemente, em Davos, o príncipe Faisal bin Farhan Al-Saud, Ministro das Relações Exteriores do “Reino”, declarou, de forma inequívoca, que não haverá normalização com o estado sionista. E para aqueles que ainda pensam ser os sauditas totalmente submissos aos Estados Unidos, uma informação, amplamente conhecida, para que cada um tire suas conclusões: 15 dos 19 indivíduos (ou quase 80%, para quem gosta de percentagens) que participaram nos ataques de “11 de setembro”, nos Estados Unidos, eram cidadãos sauditas (sem contar o próprio Osama Bin Laden).

A reaproximação entre sauditas e iranianos tem a assinatura da diplomacia confucionista milenar chinesa, silenciosa e terrivelmente eficaz, mas certamente é, sobretudo, resultado dos esforços e desejos de Irã e Arábia Saudita de inaugurar um novo capítulo na História da região. Por outro lado, fica claro para o mundo que os Estados Unidos não possuem os requisitos mínimos para mediar conflitos na região, pois suas estratégias se limitam a pressões, chantagem, ameaças, sanções e intervenções militares.

Definitivamente, a convivência íntima com sionismo, sem as devidas precauções profiláticas, causa um estrago imenso na “saúde” ética, humanidade e senso de justiça de qualquer nação. Portanto, a China se firma como uma superpotência também na diplomacia simplesmente pelo vácuo deixado pelo Ocidente no seu “abraço dos afogados” moral com o sionismo. Convém também lembrar que os chineses escolheram entrar no Oriente Médio pela porta de Teerã e não pela de Tel Aviv. Antiguidade e legitimidade contam muito para o “Império do Meio”.

Por último, a aproximação entre sauditas e iranianos é uma vitória maiúscula da Resistência em uma longa e custosa guerra contra um inimigo cujo arsenal de velhacarias parece inesgotável, mas que, ao mesmo tempo, deixa claro,  definitivamente, que a entidade sionista é e será o que sempre foi: uma mistura de “colônia de povoamento” e “parque temático pseudo-religioso” intramuros e dependente de uma metrópole, seja a Inglaterra ou os Estados Unidos, que está condenada a ser  governada por um punhado de euro-judeus, cooptando judeus fanáticos e desesperados pelo mundo e dependendo, cada vez mais, de mercenários de todas as cores e tamanhos.

Mas quais seriam os benefícios da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita?

De imediato, um golpe significativo na arrogância americana, que por décadas se auto-investiu no papel de “xerife” na região. Também uma ducha de água fria nos planos sionistas de normalização, e mesmo uma mensagem para os russos, do tipo é “assim-que-se-faz-camarada”. Sem a Arábia Saudita, os “Emiratis”, que estão, inescapavelmente, na esfera de influência saudita, serão obrigados a rever sua política pelega de correr para o colo sionista, pois a política americana no Oriente Médio não é mais dirigida por dois corretores de imóveis.

A aliança esvaziaria as agendas grotescas da miríade de grupos dos fanáticos “cortadores de cabeça”, que se escondem atrás de acrônimos vazios e cujas vítimas são, na maioria, os muçulmanos. Além disso, seus atos bárbaros também serviram para alimentar os “abutres” que promovem agendas islamofóbicas pelo mundo. O Oriente Médio gradualmente deixaria de ser, para o desgosto de alguns, entre eles os medíocres que fizeram destes grupos carreira política e acadêmica, um eterno “playground” para “Bestas do Apocalipse”.

No Líbano, uma aliança iraniano-saudita seria a solução para enquadrar os “chefes de milícia” e “senhores feudais” libaneses para que eles se comportem como estadistas e políticos sérios, para variar. No Egito e Jordânia, o isolamento destes dois “homens-doentes” do Oriente Médio se acentuaria, pois se tornou óbvio que os acordos de paz com a “camorra” sionista resultaram em mais caos econômico, com direito a uma política de eterno “pires na mão”, um sistema político apodrecido e a pulverização do capital político daqueles países perante as massas árabes. E por certo, seria um aviso para os regimes de tiranetes desesperados por dólares e armas como Marrocos, Mauritânia, Sudão e outros figurantes que nem aparecem nos créditos finais.

No Oriente Médio e além, uma aliança Riad-Teerã poderia ajudar a estabilizar áreas de instabilidade endêmica, como o Afeganistão, e, sem dúvida, projetar uma colaboração com Istambul, na Síria e no Cáucaso, encorajando os turcos a rever seu kemalismo sempre traído pelo Ocidente e entender que ninguém os quer na Europa, exceto como mão-de-obra barata, mas em décadas passadas, como eternas “buchas de canhão” para deter os russos e para tentar legitimar, na região, o “frankenstein sionista”, cujo criação eles carregam na consciência. Talvez fosse a oportunidade de repaginar o “Eixo da Resistência”, com menos slogans e pôsteres e com mais ações concretas, em uma aliança de potências regionais contra-hegemônicas para varrer, de uma vez por todas, as intromissões estrangeiras na região.

Por último, sobre a “Mãe de Todas as Causas”, a maioria esmagadora de iranianos e sauditas é devotada à Causa Palestina. Os altos-e-baixos ao longo dos anos, principalmente no que se refere à relação entre sauditas e palestinos, foram muito mais por discordâncias pontuais, interesses políticos passageiros ou resultado do “divide et impera” de nossos inimigos. Juntos, sauditas e iranianos podem mediar os conflitos internos para unir os palestinos em Gaza, na Cisjordânia e, futuramente, libertar toda a Palestina Histórica do flagelo sionista. O momento é propício, pois torpedear as tentativas de normalizar o apartheid sionista e a sionização de Jerusalém é preciso. Para terminar, se vale palpite, aqui vai um: próxima parada do “rolo-compressor” chinês: algum lugar entre a Ucrânia e a Rússia.

Tufy Kairuz é historiador, professor, PhD em História pela Universidade York, no Canadá, e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro