E se o golpista judeu brasileiro fosse muçulmano?

20/11/2020
Por: Ualid Rabah

Um golpe multimilionário, aplicado em investidores brasileiros e estrangeiros, levou à prisão de Jonas Jaimovick, descrito pelo insuspeito jornal israelense The Times Of Israel como “um empresário judeu brasileiro acusado de enganar investidores em dezenas de milhões de dólares”. Ainda segundo o mesmo jornal, em sua edição de 12 de novembro, o esquema que vitimou milhares de investidores seria “semelhante ao de Madoff”, em referência ao consultor financeiro estadunidense de nacionalidade (também) israelense Bernard Madoff, preso nos EUA em 2008 por fraudes que lesaram em até 19 bilhões de dólares milhares de pequenos investidores, quase todos da comunidade judaica daquele país, bem como suas instituições apresentadas como de caridade.

Jaimovick adotou um golpe recorrente: tomar dinheiro prometendo rendimentos impossíveis no mercado financeiro ou de capitais. Fora as falsas engenharias financeiras inventadas por estes golpistas modernos, sua fraude reproduzia, basicamente, uma mais antiga, em que agiotas tomavam dinheiro de terceiros prometendo-lhes rendimentos convidativos, recursos que emprestavam a juros maiores do que os que pagariam àqueles de quem tomavam os recursos. Num primeiro momento honravam os compromissos, mas depois, já tendo tomado grandes somas na “praça”, desapareciam e nunca mais se ouvia falar deles.

Pode-se dizer que os que acreditam nestas vantagens também são culpados de “usura”, já que, por suas gulodices, acreditaram em algo notoriamente falso. Entretanto, é preciso relativizar isso nos dias atuais, em que notícias acerca do chamado mundo de capitais, bolsas e coisas assemelhadas informam as pessoas comuns de grandes saltos nos valores de ações e outros investimentos, com lucros inacreditáveis dos investidores, dando a entender que é possível, a operadores ousados, lucros acima do normal e legais. No caso concreto a coisa foi pior: tratou-se de pirâmide financeira, isto é, com os dinheiros da maioria pagou dividendos uma minoria e assim ganhou credibilidade para seguir no golpe.

(…) tudo isso perde importância diante de uma tendência que nos tem governado: a de se dar maior importância à origem étnica e/ou religiosa do criminoso – ou acusado – do que ao seu crime sempre que este for “muçulmano”. O mesmo jamais se dará quando aquele ao qual se atribui crime for de qualquer outro grupo étnico/religioso.

O jovem Jaimovick, que vivia o fracasso dos negócios da família, bem como os seus próprios, ao ponto de se ver obrigado a tomar pequenos empréstimos de amigos para cobrir as contas do mês, sonhava em se tornar aceito nas altas rodas da comunidade judaica carioca, como apontou reportagem que detalhou os estratagemas que adotou para ganhar a confiança de gente deste meio social. Foram estes os seus primeiros clientes e foi a partir deles que iniciou sua ascensão.

Daí foi um pulo até conseguir ingressar no seleto grupo em abonados judeus cariocas. Foi quando conseguiu ingressar no grupo de WhatsApp Chaverim (amigos, em hebraico) que Jaimovick deu o grande salto. Além de novos e abonados clientes, ele obteve uma espécie de carta de apresentação e de notoriedade.

Mesmo com um negócio sem solidez alguma, Jaimovick ousou ainda mais, desta vez ganhando as confianças de gente famosa, como do ex-jogador Zico, que até passou a ser um de seus clientes, assim como de outro ex-jogador do Flamengo e da seleção brasileira, o hoje comentarista esportivo Junior. E foi ainda mais além: passou a patrocinar equipes de futebol no Rio de Janeiro e de outros estados. E, claro, nunca negou patrocínios aos eventos da comunidade judaica, especialmente a carioca.

Caso Jonas Jaimovick, acusado de sumir com R$ 170 milhões de 3 mil investidores, evidencia como a imprensa brasileira usa dois pesos e duas medidas para noticiar atos criminosos de membros da comunidade islâmica e judaica (Foto: reprodução da internet)

Todo o resto é mais ou menos conhecido. O golpe é de dezenas de milhões de reais (fala-se em R$ 170 milhões), muitos dos seus clientes foram à ruína, outros tantos entraram em depressão, até tendo havido tentativas de suicídio. Já com investigações em curso, reveladas pela Globo, os investidores correram atrás de seus ativos, quando descobriram que estes não existiam mais. Todas as contas da JJ Invest de Jaimovick estavam zeradas e ele foragido.

Mas tudo isso perde importância diante de uma tendência que nos tem governado: a de se dar maior importância à origem étnica e/ou religiosa do criminoso – ou acusado – do que ao seu crime sempre que este for “muçulmano”. O mesmo jamais se dará quando aquele ao qual se atribui crime for de qualquer outro grupo étnico/religioso.

O tratamento é totalmente inverso quando os acusados são de origem árabe, notadamente quando muçulmanos. Os exemplos são fartos e de conhecimento do cidadão comum, visto o bombardeio noticioso viciado que intoxica a sociedade brasileira como jamais antes, quase já atingindo a distorção percebida nos EUA e em certos países europeus.

No caso Jaimovick, sua afiliação religiosa, ao judaísmo, nem de longe foi reportada. Não se viram manchetes de capa informando de um “golpista judeu”. Na verdade, seria condenável caso houvesse ocorrido. Só se soube que era judeu por outra razão: grande parte de suas vítimas integrarem a comunidade judaica, a carioca majoritariamente.

Importante notar, portanto, ao menos presumivelmente, que foi a importância das vítimas o que levou a sabermos de seus credos religiosos, bem como o do golpista, e vir às páginas policiais o judaísmo. Logo, não fossem suas vítimas as que foram, dificilmente teríamos visto implicada esta fé religiosa nas páginas policiais dos grandes veículos de comunicação.

Seus vínculos com Israel e a tentativa de sua ex-esposa de embarcar para este país inclusive acostumado a abrigar foragidos das justiças de todo o mundo, enquanto Jaimovick estava foragido, também foram anemicamente noticiados e, em seguida, feitos desaparecer até das buscas na rede mundial de computadores.

O tratamento é totalmente inverso quando os acusados são de origem árabe, notadamente quando muçulmanos. Os exemplos são fartos e de conhecimento do cidadão comum, visto o bombardeio noticioso viciado que intoxica a sociedade brasileira como jamais antes, quase já atingindo a distorção percebida nos EUA e em certos países europeus. Até uma certa neurose coletiva já é possível sentir em setores da sociedade brasileira, especialmente aqueles mais sujeitos às fake news, muitas delas difundidas por setores fundamentalistas que se autoproclamam evangélicos que, mesmo minoritários, têm encontrado eco graças ao seu ativismo e à sua ousadia na produção das mais grosseiras falsificações.

Se a condição de palestino estiver somada, temos um quadro muito piorado. À guisa de exemplo, remontemos ao início do ano passado, quando uma quadrilha que vendida carros roubados foi desarticulada no sul do Brasil. Era apenas mais uma das muitas que atuam no Brasil e cujo alcance era ínfimo. Apenas porque vendia alguns carros no Uruguai, foi tachada de “quadrilha internacional”.

A melhor crítica a esta forma distorcida de noticiar veio, por incrível que possa parecer, justamente do The Times Of Israel. O jornal israelense identificou uma associação inadequada entre criminoso e sua fé religiosa. O problema seria uma foto que ilustrou uma das reportagens do jornal brasileiro O Globo, na qual Jaimovick aparece segurando um rolo da Torá (livro sagrado judeu).

Até aí apenas mais uma notícia policial e sua dramatização por programas de rádio e televisão policialescos, ainda permitidos no Brasil. Mas não, porque o que mais importou na notícia foi a “nacionalidade” dos integrantes da quadrilha, indicada como palestina. “O grupo é formado por pessoas da mesma família e descendentes de palestinos”, teria dito o delegado à frente da investigação a um veículo de comunicação local.

Alguns grandes veículos de comunicação também repercutiram o caso, que, sem medo de errar, se reproduz às dezenas, senão centenas, todos os meses, senão semanas, no Brasil. Se é assim, por que dar a este caso tamanha importância? Não há outra explicação senão a de que havia o propósito de criminalizar a comunidade palestino-brasileira no início de um ano em que setores extremistas se assanhavam para mergulhar o Brasil numa onda repressiva a determinados setores da sociedade brasileira.

Nitidamente, neste caso, mais importou a origem nacional dos acusados do que o crime que praticaram, que, frise-se novamente, é corriqueiro e, no caso concreto, de monta irrelevante.

A melhor crítica a esta forma distorcida de noticiar veio, por incrível que possa parecer, justamente do The Times Of Israel. O jornal israelense identificou uma associação inadequada entre criminoso e sua fé religiosa. O problema seria uma foto que ilustrou uma das reportagens do jornal brasileiro O Globo, na qual Jaimovick aparece segurando um rolo da Torá (livro sagrado judeu). O desconforto foi tamanho que a vereadora carioca Teresa Bergher, apresentada pelo jornal israelense como “vereadora judaica do Rio”, manifestando indignação com o uso da religiosidade do acusado ao noticiar seus crimes.

“Como membro da comunidade judaica do Rio de Janeiro e presidente da comissão de direitos humanos da Câmara Municipal, gostaria de pedir para evitar o uso de símbolos judaicos ligados ao dono da JJ Invest”, teria reclamado a vereadora, conforme reproduzido por The Times Of Israel. Ainda segundo o jornal, para Teresa Bergher, usar o “o maior símbolo da religião judaica”, poderia “gerar confusão e até mesmo uma onda de antissemitismo”.

Como seria bom se árabes e muçulmanos, palestinos em particular, tivessem suas origens nacionais ou religiosas mencionadas apenas quando roubassem somente membros de suas comunidades!

Evidente que a vereadora está certa. Mas a mesma certeza não tem se aplicado quando a distorção afeta árabes em geral e muçulmanos em particular. A clara promoção do ódio e da intolerância dirigida aos muçulmanos não tem merecido atenção, por exemplo, da mesma vereadora, que preside a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, cidade campeã, no Brasil, em islamofobia, seja a produzida pelos próprios veículos das Organizações Globo, seja a tocada pelas centenas de sites fundamentalistas ligados aos CNPJs de Cristo que se autointitulam igrejas e se autoproclamam evangélicas.

Mas o que talvez melhor explique estes diferentes pesos e medidas para situações idênticas seja a hipocrisia, visível quando em tela o golpe aplicado por Jaimovick. “Jonas (Jaimovick) quebrou a confiança, destruiu vidas, afetou uma comunidade com mais de 100.000 membros e manchou imagens”, teria reclamado uma das vítimas, segundo o jornal de Israel.

Como seria bom se árabes e muçulmanos, palestinos em particular, tivessem suas origens nacionais ou religiosas mencionadas apenas quando roubassem somente membros de suas comunidades!

Ualid Rabah é presidente da FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil