O fracasso do direito internacional: de Mussolini a Netanyahu

22/03/2024
Por: Argemiro Cardoso Moreira Martins

Em 1935-36, a Itália facista desencadeou uma brutal guerra de conquista contra a Etiópia, fazendo largo uso de armas químicas contra a população civil. A disparidade econômica e militar entre os países era enorme. A Etiópia apelou à Sociedade das Nações – a antecessora das Nações Unidas – que decidiu favoravelmente às suas demandas, condenando a ação de Mussolini como uma guerra de agressão e impondo sanções econômicas. No entanto, as sanções foram ineficazes devido à falta de apoio dos governos nacionais, especialmente da França e da Inglaterra. Apesar das diversas manifestações populares ao redor do mundo contra a agressão fascista.

Já no exílio, o Imperador etíope Hailé Selassié I proferiu um discurso tão premonitório como inócuo na  assembleia da Sociedade das Nações, em Genebra. Afirmou que estava em jogo não apenas a sorte do povo etíope, mas a “moralidade internacional” na medida em que se abalaria a “confiança que cada Estado deve conceder aos tratados internacionais”. Enfim, era a própria existência da Sociedade das Nações que estava em risco. Ao final, apelou aos “representantes do mundo” perguntando: “Que resposta terei de dar a meu povo?” – Vide: https://www.loc.gov/item/2021667904/

Passados quase 88 anos, a pergunta de Hailé Selassié ainda persiste. Que resposta o direito internacional pode dar ao povos ameaçados pela agressão de nações poderosas? Atualmente, que proteção o direito internacional humanitário é capaz de oferecer aos palestinos que padecem em Gaza?

Desde o final do ano passado, a Corte Internacional de Justiça debate se a matança perpetrada por Israel configura genocídio conforme a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948. O caso apresentado pela África do Sul é o primeiro contra Israel desde a fundação da Corte, em 1945. O processo jurídico pode se arrastar por anos com a apresentação de memoriais, a admissão do caso, a realização de audiências e o julgamento final. Em face disso, a Corte emitiu uma medida cautelar incitando Israel a parar o genocídio em Gaza, nos termos do Art. II da mencionada Convenção.

Não se deve superestimar os efeitos das decisões judiciais no direito internacional. Caso a Corte decida, liminar ou definitivamente, pelo fim da ação genocida, cabe a Israel cumprir a decisão. Caso isso não ocorra, caberá recurso ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, que poderá votar uma resolução. Em 1984, a Corte, em decisão liminar a favor da Nicarágua, determinou que os Estados Unidos parassem de apoiar os grupos paramilitares que combatiam o governo nicaraguense e, especialmente, que parassem de minar os portos do país. Os Estados Unidos não somente descumpriram a decisão da Corte, como vetaram a resolução graças ao seu status de membro permanente do Conselho de Segurança – Vide: https://icj-cij.org/case/70

Após três vetos consecutivos dos Estados Unidos, não existe esperança de o Conselho de Segurança aprovar alguma resolução capaz de parar o massacre da população civil em Gaza. Mesmo que se aprovasse alguma medida, isso não significaria muito. Em 1982, tanto o Conselho de Segurança, quanto a Assembléia Geral das Nações Unidas condenaram o selvagem massacre de civis palestinos em Sabra e Shatila, perpetrado por milícias libanesas com a cumplicidade e o apoio do exército israelense. Como resultado da pressão internacional, o governo de Israel criou a comissão Kahan para apurar o envolvimento do seu exército no genocídio. A comissão, relutantemente, admitiu a responsabilidade “indireta” de Israel pela atrocidade e recomendou a destituição do então ministro da defesa, Ariel Sharon, que renunciou ao cargo. Sharon nunca foi julgado por seus crimes e tornou-se primeiro-ministro de Israel em 2001 – Vide: https://www.un.org/unispal/wp-content/uploads/2021/09/AHRC48NGO68_210921.pdf

Da Etiópia à Palestina, as populações vítimas dos massacres fascistas de Mussolini e de Netanyahu não obtiveram nenhuma resposta efetiva do direito internacional. Isso é assim porque as nações poderosas cumprem o direito apenas quando lhes convem. O caso de Israel é exemplar. Trata-se de um Estado que sistematicamente descumpre as determinações das Nações Unidas, desde o plano original recomendando a partilha da Palestina – fixado na Resolução 181, de 1947 – até a determinação para que deixe de promover o assentamento ilegal de colonos e de construir muros para segregar a população palestina nos territórios ocupados – Resolução ES-10/13, de 2003. O genocídio em marcha na faixa de Gaza é o ápice desse longo processo de impunidade e de ineficácia do direito internacional.

O genocídio é escancarado: o massacre da população civil por meio do ataque militar direto e do cruel bloqueio de alimentos, remédios e água; o bombardeio indiscriminado de escolas, mesquitas e hospitais; o assassinato de médicos, enfermeiros e jornalistas e o elevado número de mulheres e crianças mortas. Tudo isso é grave demais para ficar sem uma resposta consequente do direito internacional. A ausência de resposta adequada importará na obsolescência do próprio direito.

Fundamentalmente, ante a ineficácia comprovada do direito internacional humanitário, cabe reconhecer a legitimidade da luta armada do povo palestino. Não existem terroristas em Gaza. O que existe é um povo precariamente armado em uma luta desesperada e desigual por sua própria existência. Conclamar um suposto direito à “autodefesa” dos israelenses ante o “terrorismo extremista” dos palestinos não passa de grosseira hipocrisia.

Como percebeu o monarca etíope Hailé Selassié, existe algo mais do que a luta de um povo por sua existência. O que também está em jogo é a própria “moralidade internacional”. Após a conquista da Etiópia pelos fascistas de Mussolini, a Sociedade das Nações sucumbiu à sua própria falta de serventia. Assim como a sua predecessora, a Organização das Nações Unidas também está ameaçada. Ela, que deu origem ao Estado de Israel, pode perecer por não garantir a existência do povo palestino. Se as Nações Unidas perderem a legitimidade que lhe empresta a comunidade das nações, não haverá o que lamentar. Guardemos os lamentos para os sofridos palestinos. Porém, esse heróico povo não precisa de nossos lamentos. Eles precisam é do reconhecimento internacional imediato de seu Estado e de seu território, livre de invasores.

Argemiro Cardoso Moreira Martins é professor Associado de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bacharel em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).