Shireen: uma voz pela Palestina

26/05/2022
Por: Geraldo Adriano de Campos

Há duas semanas a jornalista palestina Shireen Abu Akleh, que trabalhava na Al Jazeera, foi executada por Israel, com um tiro na cabeça. Estava vestida com seu uniforme de imprensa e foi executada a sangue frio.

Shireen, experiente, estava posicionada com outros jornalistas em uma área aberta e já tinham indicado que estavam trabalhando (com colete de imprensa). Não havia confronto armado naquele momento. Subitamente, um tiro de sniper nas costas de seu colega da Al Jazeera, Ali Sammoudi. Shireen gritou. Gritou por uma ambulância. Gritou que Ali tinha sido atingido. Ao gritar, seu corpo se expôs ao tiro preciso e calculado do sniper israelense. Não havia fogo cruzado. Não havia nada, a não ser um pequeno grupo de jornalistas identificados. A jornalista Shatha Hanaysha estava a seu lado e viu a bala acertar Shireen. Cada vez que ela tentava verificar o pulso de Shireen, o corpo imóvel no chão, uma bala se aproximava de seu braço.

Shireen estava cobrindo uma operação militar israelense nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia. Ela estava com capacete e colete a prova de balas. Miraram em sua face. Os snipers israelenses são infalíveis. Um tiro no rosto. Ela estava em Jenin. Deseja saber o que Israel fez no campo de refugiados em Jenin em abril de 2002? Procure o filme “Jenin, Jenin”, de Mohamad Bakri (disponível no youtube) com os resultados da operação “Defensive Shield”. Foi um massacre. Naquela ocasião, Israel proibiu a entrada de jornalistas e organizações de direitos humanos “por questões de segurança”. Há exatos 20 anos.

Confira matéria da FEPAL sobre os 20 anos do massacre de Jenin

O que vai acontecer em relação à morte de Shireen? Qual será a inflexão que provocará no chamado “campo democrático brasileiro”? Nada. Manifestações pontuais de indignação e defesa da liberdade de imprensa. No dia seguinte à execução de Shireen, Israel continuará sendo saudada na imprensa brasileira como a “única democracia do Oriente Médio”, as universidades brasileiras continuarão a realizar convênios com Israel, intelectuais continuarão a disseminar o discurso dos “dois lados”, falando sobre o “conflito Israel x Palestina”, a autoproclamada “esquerda sionista” afirmará sua distância em relação à “direita israelense”, as organizações culturais, literárias, artísticas, esportivas continuarão normalmente a manter suas relações com Israel, pois “afinal de contas, qual país não mata, não é mesmo?”.

E todos aqueles que se opõem a isso, que ousam dizer que os palestinos e palestinas têm direitos, serão acusados de radicalismo. Aqueles que sugerirem ações pacíficas por parte da sociedade civil, de boicote, como ocorreu na África do Sul durante o apartheid, serão chamados de antissemitas. Em 24 horas, no máximo, no Brasil, o assunto terá desaparecido. Até o próximo ataque a Gaza, a próxima morte de uma criança palestina…

Leia também: “As modernas formas de silenciar a Causa Palestina no Brasil”, de Jeanderson Mafra

A israelização do mundo como condição necro-colonial contemporânea parece não ter centralidade na proliferação dos discursos “pós-coloniais” e “decoloniais” na universidade e nos movimentos sociais brasileiros. Parece haver um descompasso entre as duas coisas. Algo a ser compreendido.

Eu era professor de Ciências Políticas em um curso de jornalismo. Hoje, se estivesse em uma sala de aula de um curso de jornalismo, eu teria apenas uma pergunta aos estudantes: o que significa ser uma jornalista na Palestina? Shireen era um dos maiores nomes do jornalismo palestino, uma referência para novas gerações.

Shireen era conhecida como a “voz da Palestina” e, antes de morrer, gritou. Seu último grito foi de denúncia, de alerta e de solidariedade.

Ao gritar por Ali Sammoudi, revelando-se à mira do soldado israelense, Shireen emprestava sua voz a todos os corpos palestinos, como fez ao longo de sua carreira. Para uma força colonial, não basta que a voz seja silenciada. É preciso que uma bala atravesse o rosto que estampou as telas do mundo árabe por décadas.

Mas, como bem lembrava um saudoso amigo, “o sangue dos mártires é fértil”. Os palestinos perderam o espaço, para vencerem no tempo.

Geraldo Adriano de Campos é doutor em Filosofia (FFLCH-USP), Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP) e graduado em Relações Internacionais (PUC-SP). Professor da Universidade do Departamento de Relações Internacionais na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos (CEAI). Coordenador do projeto Árabe Latinos! da UNESCO.