PAI “IMPERIALISTA”, FILHO IGNORADO: A INCRÍVEL HISTÓRIA DE FARIS GLUBB
14/06/2023Tufy Kairuz*
“O Oriente é uma carreira”
Benjamin Disraeli
(Tancred, II, xiv).
“Por isso seu nome nunca será lembrado.”
Achilles
Faris Glubb nasceu em 1939, em Jerusalém, durante o Mandato Britânico da Palestina, e foi batizado “Godfrey” (em homenagem ao rei cruzado Godofredo de Bulhão) Peter Manley Glubb. Ele era filho de Sir John Bagot Glubb, Conselheiro Militar do exército jordaniano, e igualmente odiado por nacionalistas árabes e sionistas. Sir John Glubb ficou conhecido como Glubb “Paxá”, o criador e comandante da famosa “Legião Árabe”, uma tropa beduína singularmente eficiente na arte da guerra.
Godfrey Glubb cresceu na (ainda) Transjordânia, entre soldados beduínos comandados pelo seu pai. Porém, quando chegou a idade, foi enviado à Inglaterra para estudar no “terrivelmente cristão” Wellington College e se tornar tudo que se esperava de um “gentleman”, cuja missão era carregar o pesado “fardo do homem branco” entre “selvagens” de pele morena e de fé “exótica.”
Profundamente infeliz na terra de seus ilustres ancestrais (o avô de Godfrey também foi general de Sua Majestade), Godfrey se sentia bem mais à vontade entre os “bárbaros” beduínos. Eis então que Godfrey, o filho de Sir John Glubb, protagoniza um episódio épico e emocionante. Um dia, farto daquela Inglaterra que não mais reconhecia como sua terra, Godfrey fugiu do tédio insuportável de sua universidade e se refugia na Embaixada da Jordânia, em Londres, abraçando aos prantos os atônitos guardas beduínos que vigiavam a sede diplomática jordaniana para ser, em seguida, acolhido por um emocionado Adido Militar do Reino Hachemita.
O conquistador é conquistado: Sir John Glubb “Paxá” e o então adolescente Faris Glubb, “o Beduíno”, diante dos oficiais da Legião Árabe (1950).
Como solução conciliadora, seus pais, na Jordânia, o enviaram para o Aiglon College, na Suíça. Mais tarde, por iniciativa própria, Godfrey estudou árabe na famosa “Escola de Estudos Orientais e Africanos” (SOAS), da University of London. Assumindo apaixonadamente sua arabidade e se convertendo ao Islã, agora não mais como “Godfrey”, mas como “Faris”, se tornou um ativista afiliado à “Bertrand Russell Peace Foundation”, além de tantas outras causas no Mundo Árabe.
Depois de lecionar e trabalhar como repórter na Tunísia, Faris se mudou, em 1967, com sua primeira esposa, Sharon, e o filho pequeno, Mubarak, para Amã, exatamente 11 anos após seu pai ter sido demitido pelo então rei Hussein da Jordânia. Faris foi professor em uma escola para refugiados palestinos e depois trabalhou para o “Hashemite Broadcasting Service”, se tornando, também, correspondente para a CBS News.
Como muçulmano e amigo de revolucionários, Faris contrastava imensamente com seu pai, um britânico cristão conservador. No entanto, apesar das aparências, havia muito em comum entre pai e filho. Ambos viveram uma vida guiada pela fé. Ambos tinham humildade e um imenso senso de justiça, especialmente dedicado aos palestinos. Ambos tinham uma mensagem que precisava ser conhecida por todos: Glubb Paxá, o pai, o fez por meio de seus livros e conferências, e Faris Glubb, o filho, por meio de seu jornalismo e ativismo.
Faris Glubb se mudou para Beirute durante a década de 1970 e cobriu a Guerra Civil libanesa para as mídias ocidentais e para agências de notícias árabes. Sua devoção ao Islã, seu conhecimento profundo da política árabe, sua tremenda coragem e suas relações próximas com homens do quilate do escritor e mártir palestino Ghasan Kanafani, permitiram que Faris tivesse um acesso privilegiado, geralmente negado à maioria dos jornalistas ocidentais.
Além do jornalismo, Faris também construiu uma carreira alternativa como tradutor e autor de histórias e poesia palestinas, em árabe e inglês. Faris publicou vários livros, dentre os quais “Sionismo: é racismo?”, “A Questão Palestina e o Direito Internacional” e “As Relações Sionistas com o Nazismo”. Na época de sua morte, estava quase terminando seu Ph.D., em árabe, na sua alma mater, a prestigiosa “Escola de Estudos Orientais e Africanos” (SOAS), da University of London, sobre o relacionamento entre Ricardo Coração de Leão e Saladino, pesquisado a partir de documentos dos arquivos do Vaticano.
Faris militava em organizações islâmicas de Direitos Humanos e era requisitado como um eloquente comentarista sobre o Islã e o Mundo Árabe. Ele possuía uma fé firme e sua seriedade era temperada com um senso de humor anárquico. Em 3 de abril de 2004, no Kuwait, Faris Glubb morreu em consequência de um acidente automobilístico, cujo culpado nunca foi identificado. Ele deixou viúva sua 2ª esposa, Salwa, e suas duas filhas, Sarah e Darina, além de seu filho Mark (Mubarak).
A trajetória de Faris Glubb é fascinante e certamente viraria, em mundo que não fosse dominado pelos inimigos das causas que defendia, uma história a ser conhecida por todos. Faris era filho de um típico militar britânico a serviço do Império Britânico. Como era de se esperar, seu pai cumpriu sua missão à risca e com tremenda eficiência, pois transformou um bando de beduínos em uma força combatente temível e altamente eficaz.
Ordens superiores impediram derrota de Israel
A Legião Árabe, sob o comando de seu pai, fez o que nenhum exército árabe, mais numeroso e mais equipado, fez em quatro guerras com os sionistas (à exceção de lampejos, em 1973, em algum engajamento da Resistência Palestina e, mais recentemente, pela Resistência Libanesa).
Infelizmente, Glubb Paxá não pode extrapolar as ordens dos governos de duas Majestades: a britânica e a jordaniana. Em 1948, mesmo engajando vitoriosamente contra os sionistas (que passaram a odiá-lo e o acusando de massacres), ele, cumprindo ordens, determinou que a Legião Árabe, mesmo severamente limitada no que tangia à natureza do armamento, parasse e não finalizasse a derrota do invasor sionista, fartamente armado pelos países comunistas da Europa do Leste, com as bênçãos da defunta URSS. Pudesse a Legião Árabe ter avançado vitoriosamente, talvez não estivéssemos hoje assistindo impotentes o massacre de inocentes, o roubo descarado de terras ancestrais, a humilhação e, sobretudo, a tortura cotidiana de ter que aguentar a narrativa-patife dos sionistas.
O comandante da Legião Árabe Abdullah el Tell (à direita) com o Capitão Hikmat Mihyar (à esquerda) fotografados com prisioneiros sionistas, inclusive os do grupo terrorista Haganah, após a tomada do kibutz em Gush Etzion, em 1948.
Da minha parte, cresci ouvindo meu pai enaltecer a “Legião Árabe” repetindo, durante toda a minha infância, a frase que teria sido dita por Glubb Paxá para justificar aos seus comandados beduínos as ordens de interromper a campanha vitoriosa: “Lembrem-se que até os cadarços dos seus coturnos são pagos por Sua Majestade Britânica.” Se non è vero, è molto ben trovato!
Por que faço questão de lembrar a vida de Faris Glubb? Porque ele se tornou um fascinante herói acidental e um campeão de várias causas também caras para mim e igualmente caras para aqueles em que, porventura, tenha ainda sobrado um átomo de decência. Tudo indicava que, na melhor das hipóteses, Faris Glubb seria um britânico como seu pai: zeloso do seu dever, amigável, mas mantendo uma distância adequada dos nativos. Mas não. Faris não se tornou um invasor europeu “cordial” (como aquele que seus pais quiseram homenagear o batizando “Godfrey”), como aqueles cruzados que viviam entre os árabes e incorporavam seletivamente a cultura local. Tampouco ele foi um europeu a serviço do “King and Country”, dissimulado e hipócrita como o notório T.E. Lawrence (O “Lawrence da Arábia”). Assim, “Godfrey, O Cruzado”, se transformou em “Faris, O Sarraceno” e não parou aí. Abraçou a Causa Palestina, a arabidade e o Islã de forma resoluta e absoluta.
Faris “cruzou o seu Rubicão” pessoal, incorporando uma cultura riquíssima, não por condescendência, ou à moda dos “românticos ou espiões”, como dizia o antropólogo Clifford Geertz, mas sincera e apaixonadamente. Faris abraçou uma cultura e herança que nós árabes não estamos à altura, pois nos transformamos em caricaturas de uma “raça” de gigantes que criou uma civilização irresistível até para os piores dos nossos inimigos, que nos atacavam e nos odiavam durante o dia e se tornavam nossos pupilos durante a noite.
Fica aqui minha contribuição singela para resgatar a memória de um companheiro e irmão de lutas esquecido no labirinto de paixões do nacionalismo. Fica aqui também uma reflexão para os neófitos e viciados em equações anacrônicas que teimam em estruturar nossa Resistência em fórmulas, modelos, esquemas, ideologias, em cálculos que nunca fecham. Nem poderiam. As trajetórias de Glubb Paxá e, ainda mais, de seu filho, uma figura humana da estatura de Faris Glubb, seriam leituras obrigatórias para aqueles que se interessam e militam na luta contra o sionismo. Porém, no zeitgeist que vivemos, esta é apenas mais uma vã esperança.
*Tufy Kairuz é historiador, professor, PhD em História pela Universidade York, no Canadá, e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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