Palestina e eleições nos EUA: o papel “democrata”, da Nakba ao genocídio televisionado em Gaza

Sob governos do Partido Democrata, EUA conduziram seu títere "Israel" a cometer as piores atrocidades contra o povo palestino

06/11/2024

Kamala Harris, tão genocida quanto Biden e Netanyahu

Por Ualid Rabah, presidente da Fepal

Finalizada a apuração que retorna Donald Trump ao topo da gestão imperialista do mundo pelos EUA, na farsesca eleição por colégio eleitoral – mas corrobora em seu favor porque foi vitorioso também no voto popular – a finalizar em 17 de dezembro com a confirmação, pelos delegados (538, dos quais o republicano conquistou 277), do novo inquilino da Casa Branca, todos podemos analisar o quanto o genocídio na Palestina pesou para a derrota democrata e, mais ainda, como o Partido Democrata é historicamente ligado à conquista da Palestina pelo sionismo e a todos os crimes decisivos para que viva o povo palestino hoje sua tragédia televisionada.

Importa, primeiro, destacar que é a primeira vez na história que o tema da Palestina pauta uma eleição nos EUA, bem como pautou na Inglaterra e na França, com derrotas dos que estavam no poder gestando as políticas destes países em favor do extermínio palestino por “israel”. Mas havia uma dúvida: e se nos EUA vencerem os democratas, de fato os donos deste genocídio em Gaza, será possível explicar a derrota nas duas eleições europeias anteriores pelo apoio dos governantes de plantão ao genocídio?

Bem, eis que os democratas perderam feio, como em poucos momentos na história, porque, além da derrota presidencial, levaram uma surra nas renovações do Senado e da Câmara. Alguns dirão que a questão palestina e o genocídio em curso seriam incapazes de derrotar Kamala Harris, a vice-genocida e candidata em lugar do desistente presidente-genocida Joe Biden, uma vez que apenas 4% dos eleitores estadunidenses pesquisados pela CNN nas vésperas da eleição disseram que a política externa pautaria sua decisão.

Mas e se uma maioria dos eleitores democratas que leva a sério a posição dos EUA na agenda externa se incomodou com a postura de sua liderança quanto ao genocídio palestino? E se isso tiver levado a parte deste eleitorado a não votar ou procurar candidaturas independentes, para não falar de eventuais migrações para Trump? Até houve uma verdadeira olimpíada genocidária entre Trump e Kamala, expressa nos debates, com acusações recíprocas de leniência no apoio a “israel”, mas o fato é que o genocídio em curso é gestado pelos democratas, que poderiam tê-lo parado e preferiram, ao contrário, intensificar o extermínio em Gaza. Ou seja: por mais que Trump tenha declarado alinhamento com “israel”, quem executava o genocídio eram Biden e Kamala.

A insatisfação de parcela do eleitorado democrata com o genocídio tornou-se pública em vários momentos. Talvez o mais decisivo, com repercussão no tempo até esta eleição, tenha sido o dos estudantes das principais universidades dos EUA, expresso, de modo geral, em toda a juventude estadunidense. As pesquisas de opinião, ademais, não deixam dúvidas do impacto da questão palestina na opinião pública da ilha bipartidária disputada por Trump e Kamala, hoje muito maior que dez anos antes. Até 2013, apenas 12% dos estadunidenses eram favoráveis aos palestinos, proporção que saltou para 27% após iniciada esta fase da limpeza étnica na Palestina, um aumento, em dez anos, de 125%. Detalhe: na juventude dos EUA a visão favorável à Palestina já é majoritária.

Mesmo assim, isto é capaz de explicar, ainda que em parte, a derrota democrata? Análises mais profundas dirão disso e de mais fatores, mas é muito plausível afirmar que, pelas características eleitorais que tem a sucessão nos EUA, notadamente a moldada pelo bipartidarismo, isto é, a polarização em todos os pleitos, com os dois partidos dominantes vencendo um ao outro por margens pequenas, qualquer alteração de poucos pontos é capaz de significar vitória ou derrota. Supondo que do total de 4% dos eleitores preocupados com a política externa, apenas metade seja de democratas, e que apenas metade destes (1%) tenha deixado de votar em Kamala, isso faria cair, de eventuais 50% que tivesse da preferência, para 49% e, necessariamente, Trump sair de eventuais 49% para 50%.

E se este quadro tiver se repetido em vários estados, não seria apenas uma derrota de 2% ou 3% no cômputo do voto popular, mas a perda de todos os delegados nos estados em que esta diferença tiver levado à derrota democrata.

O papel democrata em relação à Palestina

Em virtude do papel dos republicanos na região da Ásia Ocidental, ainda designada Oriente Médio, desde o colapso da União Soviética, o imaginário popular, e mesmo de parte da intelectualidade ou de operadores políticos, é levado a creditar a esta fração da vida bipartidária estadunidense todos os tormentos dos países desta parte do mundo, notadamente a Palestina. Mas isso é engano crasso.

Se retornarmos à Declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917, na qual Arthur James Balfour, então ministro de negócios estrangeiros do império colonial inglês, promete a Palestina aos sionistas euro-judeus em detrimento do povo palestino, lá estava o democrata Woodrow Wilson (1913-1921) que, ademais, tomou parte da Conferência de San Remo (Itália), realizada de 19 a 26 de abril de 1920, na qual os vencedores da 1ª Guerra Mundial definiram as fronteiras da Ásia Ocidental e, neste redesenho, o mapa para a Palestina a ser governada pelos britânicos para torná-la o “Lar Nacional Judeu” antes prometido. Os EUA do democrata Wilson apoiaram integralmente o plano de limpeza étnica na Palestina para que nela uma nova demografia, a euro-judaica, fosse implantada em lugar da população originária, seja por seu apoio à Declaração Balfour, seja por seu papel ativo na Conferência de San Remo.

Em outro momento decisivo da história Palestina, a Revolução de 1936 a 1939, em que o povo palestino reage ao domínio colonial britânico e à empreitada sionista nele embutida e sofre a que pode ter sido, proporcionalmente, a maior mobilização bélica colonial para esmagar uma reação anticolonial, novamente um democrata comandava a Casa Branca: Franklin Delano Roosevelt. E os EUA apoiaram decididamente os britânicos em suas ações na Palestina e no restante da região, tanto por razões construídas antes quanto porque suas empresas petrolíferas já lucravam na região e precisavam do controle imperialista dos aliados França e Grã-Bretanha para seguir suas atividades em “segurança”.

No momento posterior, para que não fiquemos nas alegáveis coincidências de calendário, o da maior limpeza étnica da história, a da Palestina, realizada entre dezembro de 1947 e outubro de 1951, a chamada Nakba (catástrofe), os EUA eram geridos pelo democrata Harry Truman. Foi sob sua presidência que aos membros da ONU foram impostas as chantagens que produziram maioria em favor da recomendação de partilha da Palestina, selada pela Resolução 181, de 29 de novembro de 1947, quando aos palestinos, mais de 70% da população e donos de 94,13% da terra, foram destinados apenas 42,9% de seu próprio país para eventual futuro estado para si, ao passo que para os recém-chegados estrangeiros sionistas euro-judeus, no máximo 30% da demografia e com somente 5,87% do território, 56,5% dele, com outros 0,6% de área internacionalizada, basicamente Jerusalém, a ser administrada pelas Nações Unidas em nome da Comunidade Internacional.

Foi exatamente neste momento histórico que começou a produzir-se o que até hoje marca a Palestina: uma sistemática limpeza étnica, gerida por um regime supremacista judaico, iniciada em 17 de dezembro de 1947, que até outubro de 1951 levou à tomada de 78% da terra palestina e dela à expulsão ou morte de até 750 mil palestinos, 88% da demografia que habitava a porção então roubada para tornar-se, por autoproclamação, o estado de “israel”.

Em 1967, quando da tomada por “israel” do restante da Palestina ainda não sob poder sionista, Cisjordânia e Gaza, o plantonista democrata era Lyndon Johnson. Neste momento os EUA, que já ajudavam economicamente “israel”, conforme o formato atual, desde 1959, foram decisivos, levando à vitória da agressão sionista e às suas conquistas territoriais, que se estenderam também ao Egito (Sinai) e à Síria (Colinas do Golã).

Nem o insuspeito Jimmy Carter, hoje um crítico feroz de “israel”, deixou de contribuir nas realizações sionistas do Partido Democrata. É dele o arranjo que levou, de 1978 a 1979, ao acordo de Camp David, entre Egito e “israel”, que resultou na devolução do Sinai aos egípcios. Este é o primeiro round das façanhas de Carter. Depois, é dele a tentativa de impedir a revolução iraniana de 1979, bem como, em seguida, a insana e inútil guerra Irã-Iraque, armadilha na qual a região caiu. Sem estas cenas na região, não teriam sido possíveis o ataque “israelense” à planta nuclear civil iraquiana de Osirak, bem como o aprofundamento da invasão do Líbano por “israel” (1982), evento facilitado pela invasão anterior, de 1977, no primeiro ano de Carter no poder, quando o território libanês foi ocupado pelas forças sionistas no sul, até o Rio Litani.

Embora em 1982 o presidente fosse o republicano Ronald Reagan, a realidade à sua disposição, inclusive a nova doutrina – Doutrina Carter, de janeiro de 1980, que proclamava o direito dos EUA de usarem a força militar para defesa de seus interesses na região, herança democrata do mandato anterior -, é que permitiu que fosse alcançado o objetivo “israelense” de deslocar a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) para fora do Líbano e, pela primeira vez na história, ficar longe das fronteiras históricas da Palestina, na distante Tunísia.

Disso decorreram os massacres nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em Beirute, entre 16 e 18 de setembro de 1982, covardia perpetrada por grupo fascista libanês minoritário, a falange, apoiada por “israel”, pouco mais de duas semanas após a saída dos guerrilheiros palestinos (30 de agosto), isto é, quando estes civis, quase todos mulheres, crianças e idosos, já não eram mais protegidos pelos armados palestinos.

Embora se possa creditar ao democrata Bill Clinton (1993/2001) o Acordo de Oslo (1993), é preciso reconhecer que as Conversações Multilaterais de Madri (1991) são do governo anterior, do republicano George Bush (o pai), no qual também tiveram início as conversas secretas que levaram a Oslo. Fora disso, foi com Clinton que Oslo começa a morrer, primeiro com o assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, em dezembro de 1995, pelas mãos de extremista judeu, crime festejado por Ariel Sharon, o carniceiro de Beirute, e por ninguém menos que Benjamin Netanyahu. Detalhe: no ano seguinte teria início a segunda parte do Acordo de Oslo e nada mais conveniente do que matar quem poderia dar-lhe seguimento, pois foi quem o assinou. Mais do que isso: chega ao poder pela primeira vez, em junho de 1996, ele, Benjamin Netanyahu, o encarregado de enterrar qualquer perspectiva de paz na Palestina.

Tudo isso sob Clinton, que agora, no Michigan, apoiando sua colega de partido Kamala na reta final da campanha, fez a pior manifestação de apoio ao genocídio palestino, justificando o extermínio palestino com a chocante afirmação de que “o ‘Hamas’ forçou Israel (sic) a matar civis palestinos. Os judeus estavam lá primeiro”. Seguramente isso não reverteu os votos árabes e muçulmanos para Kamala. Mais fez em revertê-los para Trump, como parecem evidenciar os números e as primeiras análises, visto a derrota da democrata no estado.

Das “primaveras” ao genocídio em Gaza

Depois vem Barak (Hussein) Obama, negro, de pai muçulmano do Quênia, o democrata que mais deu esperanças ao mundo como presidente dos EUA. Mas foi após sua investidura como vitorioso pelo colégio eleitoral que “israel” inicia, a 27 de dezembro de 2008, o atual ciclo genocidário em Gaza, naquele momento mantido até 18 de janeiro de 2009, dois dias antes da posse de Obama. Alguém poderá dizer que ele ainda não era, formalmente, o presidente, o que é fato.

Mas já sob seu governo, Gaza foi novamente atacada, incontáveis vezes, destruída como nunca antes – 2014 foi o ano mais mortal e destrutivo antes do atual quadro genocidário – e teve sua reconstrução impedida por anos, bem como foi neste período que o bloqueio à faixa recrudesceu. Sem contar que foi sob seu governo que muitos países árabes da Ásia Ocidental e do Norte da África foram destruídos por intervenções estrangeiras, potencializadas por insurgências internas posteriores, que custaram centenas de milhares de vida, da Líbia ao Iraque, passando pela Síria, ainda conflagrada. Foram as tais “Primaveras Árabes”!

E agora, o maior genocídio de todos os tempos, proporcionalmente, é uma obra democrata. São 44.142 palestinos exterminados em Gaza, em um ano e um mês, que ascendem a 54.142, considerando os 10 mil desaparecidos sob os escombros, ou impressionantes 2,43% da demografia do território, como 5 milhões no Brasil ou 18 milhões para a Europa da 2ª Guerra Mundial por sua população atual.

É, também, a maior matança de mulheres e crianças em guerras e genocídios da história, totalizando 65% de todos os exterminados. As crianças assassinadas são 21.485, com as mortas sob os escombros, ou 9.766 por milhão de habitantes de Gaza, 3,5 vezes mais que as 2.813 por milhão na 2ª GM em seis anos, não em um.

Faltariam páginas para descrever o genocídio em Gaza, sob investigação da Corte Internacional de Justiça e assim descrito por todos os especialistas no tema. Entretanto, vale apresentar a responsabilidade dos EUA e dos democratas neste extermínio. Primeiro, 80% de todas as armas, munições e sistemas utilizados no genocídio são dos EUA, bem como foram seus U$S 22,8 bilhões (R$ 125,2 bilhões) que pagaram esta aventura de “israel”, ou U$S 434 mil (R$ 2,4 milhões) para cada criança, mulher e demais civis exterminados em Gaza.

Diante de tudo isso, o eleitor estadunidense, que estava diante de escolher o “melhor” gestor do genocídio, optou por descartar os democratas, claramente os genocidas na Palestina. Eles financiam o genocídio, impediram a ONU de impor um cessar-fogo e, mesmo depois dele aprovado, em março, não obrigam seu procurador, “israel”, a cumpri-lo. Mais do que isso: mantêm armas e dinheiro para “israel” seguir no extermínio mesmo depois de a petição da África do Sul ter sido admitida pela Corte Internacional de Justiça e ter esta determinado, a 26 de janeiro, a cessação dos atos de genocídio.

Os eleitores dos EUA podem não ter enxergado o genocida futuro, Trump, mas enxergaram os donos do genocídio, Biden e Kamala, os democratas, que, não de hoje, ocuparam a Casa Branca em todos os momentos históricos em que a Palestina foi despojada e submetida ao experimento colonial genocida em vigor até hoje, que atende pelo nome fantasia “israel”. Kamala é a genocida assumida e conhecida. A Trump o eleitor pode ter dado o benefício da dúvida.

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