Resolução 181 da ONU: da farsa da partilha à solução final de “israel” na Palestina

29/11/2024
Por: Ualid Rabah

Lembramos hoje, 29 de novembro, pela 77ª vez, os mesmos dias e mês de 1947 nos quais, por 33 votos contra 13 (mais 10 abstenções, inclusive a britânica, que almejava permanecer na Palestina por mais tempo), a Assembleia Geral da ONU aprovou o início do extermínio do povo palestino. A Resolução 181, de recomendação da partilha da Palestina, é um arremedo de legalização de um projeto colonial idealizado na obra supremacista O Estado Judeu, do austro-húngaro Theodor Herzl, algo como um Mein Kampf sionista, circulante em 1896 (29 anos antes que o austro-alemão), abraçado no ano seguinte pelo 1º Congresso Sionista (Basileia, Suíça, de 29 a 31 de agosto), depois tornado ordem colonial britânica (Declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917) e, por fim, formalmente iniciado após concluída a 1ª Guerra Mundial, em 29 de setembro de 1923, dando cumprimento à decisão de limpeza étnica da Palestina acordada pelas potências coloniais europeias vencedoras da grande guerra na Conferência de San Remo (19 a 26 de abril de 1920) e à outorga à Grã-Bretanha do Mandato da Palestina (Liga das Nações, a 16 de setembro de 1922, adotando texto redigido em Londres dois meses antes).

O original da obra “O Estado Judeu” (1896), de Theodore Herzl. O livro sistematizou o projeto dos primeiros ideólogos da ocupação e colonização da Palestina pelos euro-judeus.

Neste dia não começou uma guerra entre países com questões em disputa, mas deu-se a senha para que uma limpeza étnica, planejada 51 anos antes, fosse realizada. A ideia britânica de dividir a Palestina para que seu povo milenar tivesse apenas parte de sua terra, com a outra metade destinada a estrangeiros, basicamente euro-judeus, chegados a esta terra, em sua esmagadora maioria, no máximo 25 anos antes, veio à tona porque o projeto colonial falhou em tornar majoritariamente judaicas as demografia e geografia palestinas, quer dizer, a limpeza étnica prevista no texto do Mandato da Palestina, notadamente nos primeiros 11 artigos do total de 28. Entretanto, passados 24 anos, àquela altura no máximo 30% da demografia era judaica e esta detinha míseros 5,87% da geografia. Logo, malograda a imaginada autodeterminação sionista ao término do Mandato, para meses após aprovada a Resolução 181. Afinal, como uma minoria de estrangeiros arrastada por projeto colonial genocidário poderia reclamar a Palestina numa farsesca declaração de autodeterminação “pós-colonial”? Aliás, autodeterminação em relação a quem?

É neste resumido contexto que a Palestina é partilhada em 56,5% para futuro estado à minoria colonial estrangeira, 42,9% ao povo palestino originário e esmagadoramente majoritário e 0,6% como área internacionalizada, basicamente Jerusalém, a ser gerida pela ONU em nome da Comunidade Internacional. Partilha olimpicamente injusta, imoral e ilegal, além de descabida, porque o direito à autodeterminação inscrito na Carta da ONU é dado apenas aos povos sob domínio colonial, que no caso era o palestino, sob ocupação britânica e da Agência Judaica (Organização Sionista Mundial). Mais um detalhe: quase metade da demografia do território desenhado para ser entidade judaica era não-judaica (88% conforme o censo de então, mas poderia ser 50% ou mais se alcançados pelo censo os palestinos beduínos). Ademais, a 181 não previa trocas populacionais e, menos ainda, deslocamentos.

A carta original do Secretário de Relações Exteriores britânico, Arthur James Balfour, dirigida ao líder dos sionistas na Grã-Bretanha, o banqueiro Lionel Walter Rothschild, membro da poderosa família Rothschild, publicada em 2 de novembro de 1917. Ela dizia: “O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e fará tudo o que estiver ao seu alcance para facilitar a realização desse objetivo.”

Malgrado imoral e ilegal, a partilha determinava uso comum das infraestruturas – afinal, todas palestinas – e período de dois anos de gestão da Palestina pela ONU, contando de 14 de maio de 1948, data acordada para retirada das forças coloniais britânicas (em 13 de novembro de 1947 os britânicos haviam anunciado retirada em 1º de agosto de 1948, data máxima considerada pela Resolução 181, com dois meses além para retirada de Jerusalém). E dentre muitas determinações da 181, há uma mortal aos planos sionistas: cada futuro estado criaria “uma milícia armada entre os residentes” (8, B), cujos comandantes teriam poder somente para “fins operacionais”, restando ressalvado que o “controle político e militar geral, incluindo a escolha do Alto Comando da milícia, deverá ser exercido pela Comissão” (Comissão da ONU que administraria a Palestina até implementação completa da partilha).
O conjunto de disposições da Resolução 181, inclusive da partição equitativa dos bens econômicos, para não falar da liberdade de circulação (18, D) e da possibilidade de qualquer membro da ONU levar eventual infração aos termos da partilha à apreciação da Corte Internacional de Justiça (Capítulo 4, Disposições Gerais, item 2), impediria o cerne do plano sionista, isto é, um regime estatal supremacista judaico, em que uma outra identidade não poderá existir ou, na impossibilidade da realização máxima da premissa, que uma minoria ínfima fique sob apartheid, com seus direitos nacionais suprimidos e os civis e humanitários mitigados. É o “israel” de hoje. Mas à época, a questão posta era avassaladora para o plano sionista: como realizar a despalestinização do território se os sionistas não teriam o controle “político e militar” de suas gangues armadas?

Partilha ou limpeza étnica?

A narrativa sionista, agora muito corroída, diz a verdade sobre a posição palestina, descrita como a “recusa ‘árabe’”, que refutou os termos injustos da partilha – os palestinos não tinham como concordar com o roubo de seu país –, mas, como é prática sionista, mentem sobre sua alegada boa recepção. Suas relações públicas esbarram na sinceridade de David Ben-Gurion, um genocida convicto, que, não por acaso, veio a ser o primeiro-genocida do sionismo autoproclamado estado (14 de maio de 1948).

Para ele, a decisão da ONU deveria ser aceita apesar de “qualquer dúvida da nossa parte sobre a necessidade de transferência”, neste caso da população palestina originária, notadamente a não-judaica, visto a supremacia judaica perseguida pelo projeto colonial sionista desde sua gênese.

Mapa do Plano de Partilha das Nações Unidas, atribuindo as áreas amarelas para a Palestina e a azul para “israel”. Embora fosse menos de um terço da população da Palestina e não possuísse nem 6% das terras do país, a minoria colonial estrangeira recebeu 56,5% do território para o seu projeto de ocupação, então sobraram somente 42,9% ao povo palestino originário e esmagadoramente majoritário.

Com os falsos rojões de festejo da 181 ainda estourando, a 17 de dezembro de 1947 começa o extermínio da população palestina, com as limpezas étnicas em Deir Ayub, Beit Affa e Lifta, esta a noroeste de Jerusalém, varrida etnicamente em 28 de dezembro. Ben-Gurion vistoriou pessoalmente o trabalho de limpeza étnica em Lifta e gostou do que viu. “Quando se entra em Jerusalém, por Lifta e Romema, não há árabes (sic). Cem por cento judeus. Desde que Jerusalém foi destruída pelos romanos (sic) que ela não era tão judaica. Em muitos bairros árabes (sic) da parte ocidental não se vê nem um único árabe (sic).”.

E o genocida convicto Ben-Gurion não tem meias palavras, para desgosto dos sionistas desnudados de sua natureza genocidária: “Nos seis, oito ou dez meses da campanha, certamente haverá grandes mudanças na composição da população do país.”. Era, portanto, uma campanha de limpeza étnica planejada (desde sempre, mas neste momento histórico aplicando o Plano Dalet, que mapeava toda a Palestina para uma solução final no curto prazo).

Eis que, até 14 de maio de 1948, data da autoproclamação ilegal e, de consequência, enterro da Resolução 181, ao menos 250 mil palestinos já estavam expulsos ou mortos em incontáveis massacres. Seguindo o plano (afinal, ainda não se passaram os até dez meses do plano, mas seis), que se estendeu por mais tempo que o previsto (até final de 1951), 774 localidades palestinas foram invadidas, das quais 531 varridas do mapa e da história (da humanidade, porque milenares quase todas), com 78% da Palestina tomada a força para se tornar “israel”, parcela territorial da qual 88% da população palestina foi eliminada (os pelo menos 725 mil, segundo a ONU, limpados etnicamente), resultando nos atuais 6,2 milhões de refugiados palestinos e seus descendentes, mais de 4 milhões deles fora da Palestina Histórica – o restante na Cisjordânia, 23% da população desta área, e Gaza, composta por quase 75% de refugiados da Nakba, palavra árabe cujo significado é catástrofe, usada para a designar a limpeza étnica de então.

Se a limpeza étnica começa dias após aprovada a Resolução 181, e não a partir de 14 de maio de 1948, é honesto seguir falando em “guerra ‘árabe-israelense’”, em referência à aludida declaração de guerra ao recém-autoproclamado “israel”? Ou mais bem estamos diante de uma guerra colonial de extermínio do povo palestino, à qual há, em interpretação livre, reação muito tardia, além de descoordenada e anêmica belicamente – numericamente, quando da assinatura do armistício, em 24 de fevereiro (Rodes, Grécia), havia 117.500 soldados já “israelenses” contra menos da metade (57 mil) das descoordenadas e mal armadas forças “árabes”. Sem falar do escrutínio histórico ainda pendente da ação – e não mera omissão – de alguns destes atores na consecução da Nakba, inclusive com benefícios territoriais, ainda que anulados posteriormente (1967).

Há outra questão histórica decisiva a ser resolvida neste contexto, cara aos palestinos e à solidariedade para com nosso povo: a Nakba seguirá sendo lembrada, em nosso calendário nacional, no dia 15 de maio, ou precisamos redatar e rememorar este dia em 17 de dezembro? Isso nos levaria a lembrar, dentro de poucos dias, dos 78 anos da Nakba e entrar no curso do 79º ano, diferente dos 77 que rememoramos hoje, ingressando no 78º.

Esta revisão histórica, que não é meramente cosmética, recoloca a Nakba em conformidade com os verdadeiros eventos históricos, bem como desmistifica as lendas sionistas, notadamente a de que não houve limpeza étnica, que dirá planejada pelo sionismo desde sempre, mas, sim, consequência de uma guerra, inclusive repetindo o que houve noutras anteriores, não cabendo interpretar diferente para a ação liderada por Ben-Gurion. E reposiciona a real intenção dos sionistas, que jamais foi de se contentar com a partilha da Palestina recomendada na Resolução 181 – aliás, apenas recomendada e com muitas condicionantes, que, se aplicada, nem mesmo levariam à existência do estado judeu imaginado pelos sionistas e, logo, nem “israel” teria havido para a posteridade ainda vigente.

Solução final atualizada em Gaza

Os fracassos sionistas – ao contrário de seus alegados sucessos, como imaginados até por parte dos palestinos – são mais patentes do que nunca. Começam no período britânico, concluído sem ter sido alcançado o objetivo básico do projeto, isto é, judaizar demográfica e geograficamente a Palestina. Por isso a necessidade da Nakba, apenas em parte executada, o que levou à necessidade da guerra de conquista de 1967, esta marcada por novo fracasso, o insucesso na varredura demográfica.

O que resta hoje aos sionistas? Primeiro, sua consagração quase unânime como regime de Apartheid, o que não é pouca coisa, posto que o Artigo 2º da Convenção que define este crime absorve a quase totalidade da definição do crime de genocídio, curiosamente também no Artigo 2º da Convenção para o Genocídio. Então “israel” já estava sob a égide do genocídio nos relatórios que apontam o regime como de Apartheid. Mas agora, à eventual falta do melhor enquadramento, eis que a Corte Internacional de Justiça investiga justamente o crime de genocídio, executado ao vivo em Gaza.

O regime genocidário designado “israel” segue almejando toda a Palestina. A chamada “Lei Básica: Israel como o Estado-Nação do Povo Judeu”, de junho de 2018, formalmente atualiza o regime para definir que somente o “povo judeu” tem direito à autodeterminação na “terra de ‘israel’” – toda a Palestina, no caso, conforme os desavergonhados mapas de Netanyahu na ONU, sem a Palestina, ainda que limitada às fronteiras anteriores a 1967 – e que a colonização deste território por judeus é dever nacional e uma obrigação do estado. Entretanto, não sem problemas também atualizados, o primeiro deles o demográfico, o mais fatal ao supremacismo judaico sionista, tal qual concebido e ainda sem mudanças.

Mesmo com a limpeza étnica e a importação massiva de estrangeiros judeus, “israel” segue longe de dar consecução ao programa sionista, ainda que no mapa reduzido da Palestina do mandato colonial britânico – o plano sionista prevê território dezenas de vezes maior, abarcando Palestina, Jordânia e Líbano em suas inteirezas, Síria e Iraque quase inteiros e partes do Egito, Síria e Arábia Saudita, e mesmo de Kuwait e Turquia. O território reduzido deste plano, o da Palestina, segue contestado pelos palestinos, seja do Rio ao Mar, seja no quantum menor do arranjo precário de Oslo. E, de outro lado, a judaização da demografia sofre novo revés histórico, que sequer poderá ser resolvido tal qual em 1948, com a importação gigantesca de árabes judeus para preencher o vazio demográfico decorrente da limpeza étnica e, colateralmente, da ausência de tantos insanos euro-judeus para a empreitada quanto desejava o sionismo para a substituição da população originária.

Eretz Israel: “todo o Líbano e a Jordânia, dois terços da Síria, a metade do Iraque, uma faixa da Turquia, a metade do Kuwait, um terço da Arábia Saudita, o Sinai e o Egito, incluídos Port Said, Alexandria e o Cairo”, nas palavras dos dirigentes sionistas do século XX

No ano passado, segundo dados do Escritório de Estatísticas Central da Palestina, havia, na totalidade de seu território (do rio ao Mar e de Gaza à Galileia), 80 mil não-judeus a mais que judeus. Neste ano, a diferença está em 120 mil, ainda desconsiderado o extermínio em curso em Gaza, e a projetada para 2025 aponta quase 200 mil não-judeus a mais, número que pode chegar a 500 mil em 2030, de acordo com as mesmas projeções.

Estas projeções não consideram o quadro atual, em que centenas de milhares de beneficiários do projeto saíram de “israel” desde outubro do ano passado, com possibilidade de não retorno de boa parte, talvez a maior parte, para não falarmos que já não há mais novos candidatos à imigração à Palestina para cumprirem papel no experimento social genocida que é “israel”.

Logo, a combinação de expulsão “branda” dos palestinos e imigração infinita de estrangeiros judeus, para ir mantendo uma maioria demográfica judaica e, com isso, seguir justificando que esta maioria artificial tenha direito à “autodeterminação” em toda a Palestina, já não é real. Se esta equação não se sustenta mais, só uma nova Nakba, com a violência televisionada em Gaza, é capaz de manter o projeto sionista. Foi assim após a Resolução 181 e segue sendo assim até hoje.

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Diante do novo quadro, o extermínio em Gaza é a realização da alteração demográfica ainda pretendida pelos sionistas. Por isso o extermínio à grande escala – em 419 dias, 55.045 palestinos dizimados, considerando 10 mil desaparecidos sob escombros, 2,47% da demografia de Gaza. Segundo a renomada revista médica The Lancet, diante da devastação, feridos graves e mutilados, fome, doenças prévias a 7 de outubro do ano passado e posteriores, falta de saneamento básico e tudo que apodrece sob os escombros, é certo que haja quatro novas mortes para cada uma decorrente dos ataques bélicos. Isso levaria a uma matança apocalíptica de 225 mil, ou 10,1% da demografia de Gaza, 15 vezes mais que as mortes havidas nos 70 massacres da primeira Nakba.

Então podemos estar diante de uma explicação para tamanho extermínio. É o que o ministro das Finanças de “israel”, Bezalel Smotrich, repetiu publicamente há três dias: “conquistar” Gaza e levar a população palestina a uma “emigração voluntária” que a reduza à metade, ou seja, uma limpeza étnica de pelo menos 1,1 milhão de palestinos.

Então, que ninguém se engane quanto ao sionismo e seu projeto: segue em curso o seguidamente fracassado intento de solução final na Palestina. E retornando ao início, isso começou em 29 de novembro de 1947, na ONU, numa decisão ilegal e imoral, cujas consequências tiveram início duas semanas depois, contra as quais a mesma ONU foi inútil, como segue sendo no primeiro genocídio televisionado da história, no qual se realizam as maiores matanças de civis da história, incluídas as obscenas e olímpicas matanças de mulheres e crianças, jamais vistas – e mesmo imaginadas – em guerras e genocídios.

Ualid Rabah é presidente da FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil