O 7 de outubro é mesmo o pior ataque aos judeus desde o fim da Segunda Guerra Mundial?
01/02/2025Desde os eventos de 7/10/2023 na Palestina ocupada por “israel”, a mídia ocidental e suas retransmissoras nas colônias do Ocidente têm afirmado, inúmeras vezes, que a referida contraofensiva da Resistência Palestina assassinou mais de 1.200 “israelenses” (número que no dia do acontecimento era muito mais inflado, chegando-se a sugerir mais de 2 mil mortos), sendo, por isso, “o pior ataque aos judeus desde o fim do Holocausto (sic)”.
Só para relembrarmos, o holocausto euro-judeu foi a campanha de extermínio (“a solução final”) empreendida pelo regime nazista alemão a partir da 1941, durante a Segunda Guerra Mundial (II GM, 1939-45), que eliminou até 6 milhões de europeus professantes (ou de cultura) do judaísmo, em meio aos até 70 milhões de mortos nesta guerra europeia. Uma campanha genocida que só foi interrompida pela contraofensiva do Exército Vermelho da União Soviética, que derrotou as forças nazistas.
Os crimes nazistas na Europa serviram como justificativa para que o movimento sionista, já em solo palestino, aumentasse a pressão sobre as grandes potências vencedoras da II GM, EUA e URSS, para que apoiassem na ONU (Organização das Nações Unidas) a “partilha” da Palestina, recomendação que acabou acontecendo em 29 de novembro 1947 (Resolução 181), que deveria abrir caminho para a fundação do “estado judeu”, depois (14 de maio de 1948) autoproclamado pelos próprios sionistas e denominado “israel”. Segundo os sionistas, na época, um “estado judeu” era necessário para que não se repetisse uma nova matança de pessoas de fé judaica. Dessa forma, eles expulsaram até 800 mil dos 1,2 milhão de palestinos da Palestina para ali criar “israel” na parte do território então tomada (78% da Palestina e dela expulsando até 88% da população originária).
Com a ação armada da Resistência Palestina em 7 outubro de 2023 (“Inundação de al-Aqsa”) contra a ocupação colonial sionista, a velha retórica do Holocausto (sic) foi retomada para justificar novas atrocidades contra a população palestina sitiada pelos “israelenses” na Faixa de Gaza desde 2007, pelo menos em sua forma atual, a mais hermética de todos os tempos. A renomada (pelos liberais) revista do meio financeiro The Economist retratou o (contra-) ataque da Resistência Islâmica Palestina como a pior matança de judeus desde o Holocausto (sic). Desde então, a mídia ocidental, assim como nas colônias do Ocidente, vem repetindo esse refrão ad nauseam.
Historicamente, a afirmação de que a ação armada palestina em 7 de outubro de 2023 é o pior ataque aos judeus é correta? Mesmo se considerássemos os números de vítimas fatais da Inundação de al-Aqsa divulgados pelo regime “israelense” como corretos, lembrando que inicialmente chegaram a divulgar mais de 2 mil mortos, cifra que foi revisada e reduzida várias vezes pela própria mídia “israelense” para até 1.200 vítimas fatais, o evento teria sido o mais mortal para os judeus desde a II GM?
Levando-se em conta a História, o maior massacre de judeus desarmados em tempos de paz depois da II GM foi promovido pela ditadura da junta militar argentina, que durou de 1976 a 1983. Para quem não se lembra, a junta militar argentina tomou o poder em 24 de março de 1976, depondo a presidente eleita Isabelita Perón, com a nomenclatura oficial de “Processo de Reorganização Nacional”. Esse sangrento golpe militar contou com o apoio explícito dos E.U.A., então sob a influência da política externa do diplomata estadunidense judeu Henry Kissinger. Esse apoio foi alinhado à Doutrina de Segurança Nacional, que justificava ações repressivas em nome da luta contra o comunismo, mas que acabou criando terreno fértil para perseguições ideológicas e étnicas.
Documentos desclassificados demonstram que Kissinger, como Secretário de Estado dos E.U.A., havia orientado a junta militar a agir rapidamente na repressão aos opositores. Durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1976, Kissinger teria assegurado aos líderes argentinos que os E.U.A. não interviriam em sua “guerra suja” contra a “subversão” [2003]. Esse aval foi interpretado como um sinal verde para as Forças Armadas intensificarem as ações repressivas. Sob o pretexto de combater o “terrorismo de esquerda”, a junta implementou uma política de estado terrorista que visava também setores da sociedade considerados “subversivos”, incluindo minorias religiosas e étnicas.
Embora a repressão tivesse como alvo principal militantes de esquerda, estudantes, trabalhadores e opositores políticos, a comunidade argentino-judaica foi desproporcionalmente afetada. De acordo com a Comissão de Solidariedade com os Familiares dos Desaparecidos (COSOFAM), sediada em Barcelona, que apresentou um relatório em 1999, cerca de 10% dos desaparecidos e mortos eram judeus, apesar de representarem menos de 1% da população argentina [1999]. A população de fé judaica da Argentina, na época da ditadura, era cerca de 300 mil pessoas. Oficialmente, 10 mil argentinos são reconhecidos como mortos pelo regime ditatorial, dos quais 1.296 foram identificados como vítimas judias. No entanto, a COSOFAM estima em até 30.000 as vítimas da ditadura argentina. Se o número não oficial de 30.000 vítimas totais estiver correto, segundo João Paulo Jaroslavsky (COSOFAM), então o número de vítimas judias pode ser de mais de 3.000 [1999]. Isso faz da ditadura argentina o regime que mais assassinou judeus no mundo desde a II GM.
O ódio aos judeus era profundamente enraizado entre os militares argentinos, muitas vezes exacerbado por preconceitos que associavam os judeus ao comunismo internacional e ao “perigo subversivo”. Durante a ditadura, as vítimas judias sofreram com torturas específicas, que incluíam insultos antijudaicos, profanação de símbolos religiosos e práticas humilhantes, como forçá-las a comer carne de porco. Muitos sobreviventes de centros de detenção clandestinos relataram que os judeus eram submetidos a uma violência desproporcional em comparação a outras vítimas.
Esse foi o regime que Kissinger encorajou a tais atos repressivos em nome da estabilidade regional e da luta contra o comunismo. Seu silêncio e inação diante das evidências de atrocidades reforçaram a posição da Junta Militar.
Para fugirem da repressão, muitos argentino-judeus migraram para “israel”. Lá chegando, vários deles foram convocados para o exército para lutarem no Líbano durante as duas grandes invasões “israelenses” de 1978 e de 1982.
Outro aspecto pouco explorado, mas igualmente significativo, é o papel desempenhado por “israel” durante esse período. Apesar de “israel” ter um grande número de sobreviventes do holocausto euro-judeu e seus descendentes, o país manteve relações comerciais e militares com a Junta Militar argentina. Relatórios históricos revelam que “israel” forneceu armas e treinamento militar ao regime, muitas vezes ignorando as denúncias de violação de direitos humanos, incluindo a perseguição aos judeus. Foi nesse período que Israel forneceu armas para Argentina na Guerra das Malvinas, travada contra o Reino Unido, em 1982 [2016].
Este paradoxo, no qual um regime judeu contribuiu, quando pouco, indiretamente para o sofrimento de membros da diáspora judaica, levanta questões éticas profundas sobre a política externa de “israel”.
Portanto, quando a mídia ocidental insiste em qualificar a ação da Resistência Palestina de 7 de outubro de 2023 como o “pior ataque aos judeus desde o Holocausto”, essa narrativa não só desconsidera massacres históricos significativos, como o ocorrido durante a ditadura na Argentina, mas também revela uma tentativa de moldar o discurso público em benefício de agendas políticas específicas. As vítimas judias da Junta Militar argentina não receberam o mesmo nível de solidariedade ou reconhecimento, mostrando como a memória histórica é frequentemente instrumentalizada de acordo com conveniências políticas.
Embora o holocausto euro-judeu tenha sido um dos capítulos mais sombrios da história moderna, usá-lo como parâmetro para julgar ações em contextos completamente diferentes é intelectualmente desonesto. Essa abordagem desvia o foco da complexidade do conflito “israel”-Palestina, obscurecendo as dinâmicas de poder que definem a relação entre ocupação colonial e colonizados, às vezes indicadas como “entre dois povos”. “israel”, como uma das maiores potências militares da região, apoiada por bilhões de dólares em ajuda militar dos EUA, está longe de ser a vítima indefesa que a mídia ocidental e suas filiais tentam retratar.
Além disso, a comparação ignora a assimetria de forças entre um Estado armado com tecnologia de ponta, incluindo armas nucleares, e uma população que resiste com recursos limitados, muitas vezes em condições humanitárias extremas. Ao afirmar que o ataque de 7 de outubro é “o pior desde o Holocausto”, apaga-se deliberadamente o sofrimento palestino e reduz-se a resistência de um povo à criminalidade.
O uso recorrente de termos como “terrorismo” para descrever ações palestinas e “defesa” para justificar massacres “israelenses” reflete a profunda parcialidade da mídia ocidental e de suas afiliadas ao redor do planeta, inclusive no Brasil. Essa narrativa legitima a violência estatal “israelense” e desumaniza os palestinos, apresentando-os como agressores irracionais. Isso não apenas reforça estereótipos racistas, mas também contribui para a manutenção do status quo, dificultando soluções justas para a questão da Palestina.
A mídia hegemônica atua como um braço ideológico do colonialismo moderno, moldando percepções públicas de forma a normalizar a ocupação e os crimes de guerra e de lesa-humanidade na Palestina. É necessário questionar e desconstruir essas narrativas para promover um entendimento mais preciso e objetivo da situação.
A instrumentalização do holocausto euro-judeu para justificar crimes contra o povo palestino é uma tática cínica e desrespeitosa à memória das vítimas do genocídio nazista, ou mesmo de outros regimes, como o argentino durante a ditadura. O uso dessa narrativa não busca justiça, mas sim perpetuar um projeto colonial de supremacia e exclusão. A verdadeira lição do holocausto euro-judeu deveria ser a luta contra todas as formas de opressão, genocídio e apartheid — não a legitimação de novos ciclos de violência e desumanização.
Referências
Blair, David. Israel sold weapons to Argentina at height of Falklands War, reveal declassified Foreign Office files. The Telegraph. Disponível em: < https://www.telegraph.co.uk/news/2016/08/23/israel-sold-weapons-to-argentina-at-height-of-falklands-war-reve/> . Publicado em: 24/8/2016. Acesso em: 9/1/2025.
Campbell, Duncan. Kissinger approved Argentinian ‘dirty war’: declassified US files expose 1970s backing for junta. The Guardian. Disponível em: < https://www.theguardian.com/world/2003/dec/06/argentina.usa >. Publicado em: 6/12/2003. Acesso em: 9/1/2025.
Go-i, Uki. Jews targeted in Argentina’s dirty war. The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/theguardian/1999/mar/24/guardianweekly.guardianweekly1>. Publicado em: 24/3/1999. Acesso em: 9/1/2025.
Parentes de judeus vítimas da ditadura argentina recorrem a Israel. Associated Press in Folha de São Paulo. Disponível em< https://www1.folha.uol.com.br/fol/inter/ult22022000054.htm >. Publicado em: 22/2/2000. Acesso em: 9/1/2025.
Tour virtual pela história judaica da Argentina. Jewish Virtual Library. Disponível em: < https://www.jewishvirtuallibrary.org/argentina-virtual-jewish-history-tour#google_vignette >. Acesso em: 9/1/2025.