Um legado em espera – o tecido da vida do meu pai em Gaza

Deslocado de Gaza, o pai de Noor Alyacoubi não sente saudades apenas de casa, mas também da loja de tecidos que definiu sua vida—um lugar onde seus sonhos, trabalho e legado tomaram forma.

21/02/2025

Um cessar-fogo foi acertado, e a questão do retorno de pessoas deslocadas para o norte de Gaza parecia resolvida. Mas a travessia de Rafah continuou sendo um grande obstáculo. (Foto: via mídia social, QNN)

Por Noor Alyacoubi*

Em todas as ligações que faço para minha mãe—quando conversamos sobre nosso bem-estar—ela sempre menciona o quanto meu pai sente falta de Gaza. Ele anseia por tudo: a casa, o ar, as ruas, mas, acima de tudo, seu trabalho.

Meu pai é dono de uma pequena loja de tecidos antiga na rua Omar Al-Mokhtar, no coração da cidade de Gaza, há décadas. A loja é simples e sem adornos, mas repleta de rolos de tecidos vibrantes que criam uma atmosfera aconchegante. É um lugar onde o tempo parece passar mais devagar, onde cada dia é marcado pelo farfalhar dos tecidos.

Desde os vinte anos, essa loja tem sido o refúgio do meu pai—um lugar onde ele encontra paz, cercado por tecidos e pelo ritmo de seu trabalho. Apesar de sua formação acadêmica na Universidade do Cairo, onde se formou na Faculdade de Comércio nos anos setenta, meu pai escolheu um caminho diferente. Ele recusou muitas oportunidades tentadoras no exterior—ofertas de emprego lucrativas e programas de estudo—para seguir os passos de seu pai no comércio de tecidos. Ele estava determinado a ficar em Gaza, a construir uma vida lá, mesmo que o mundo exterior lhe oferecesse horizontes mais amplos.

Desde que me entendo por gente, meu pai nunca tirou um dia de folga—nem mesmo em feriados ou ocasiões especiais. “É mais importante do que qualquer outra coisa”, ele dizia a mim e aos meus irmãos sempre que pedíamos que ele descansasse. “É o nosso sustento—nossa principal fonte de renda.”

Costumávamos pensar que, se ele tirasse um dia de folga, finalmente descansaria e relaxaria, mas, à medida que cresci, percebi que seu trabalho era mais do que apenas um emprego. Não se tratava apenas do dinheiro. Era seu refúgio, sua fuga do mundo exterior, um lugar onde ele podia se perder no trabalho que lhe trazia conforto e realização.

Ao longo dos anos, ele trabalhou incansavelmente para expandir o negócio, tornando-o uma das lojas de tecidos mais conhecidas e duradouras de Gaza.

As pessoas que conheciam meu pai como o dono da loja de tecidos Alyacoubi falavam muito bem tanto da loja quanto de seu proprietário, elogiando não apenas a qualidade dos produtos, mas também seu caráter honesto e humilde. “Seu pai é como um segundo pai para mim”, disse-me uma costureira certa vez. Sua dedicação não era apenas por ganho financeiro; ele queria construir uma reputação na cidade de Gaza. Ele queria que seu nome fosse sinônimo de confiança e excelência, e ele conseguiu isso.

Mesmo depois de perder nossa casa em um ataque aéreo israelense em março de 2024, meu pai ainda conta os dias até poder voltar para Gaza. “Eu sinto mais falta da minha loja do que da perda da nossa casa”, ele me disse certa vez durante uma ligação.

A casa, é claro, era querida para ele, mas a loja era o trabalho de sua vida. Era um reflexo de quem ele era, dos anos que passou lá, das pessoas que passaram por sua porta e da comunidade que ele construiu ao redor dela.

Essa loja foi herdada de meu avô muitas décadas atrás, e a conexão do meu pai com ela é profunda. Não é apenas um local de negócios; é um alicerce de nossas vidas. É onde ele dedicou sua energia, seu tempo e seu coração para prover por nós. Meus irmãos e eu sempre nos sentimos conectados à loja também.

Não se tratava apenas do dinheiro que ela proporcionava—era sobre a vida que ela nos permitia ter. Os sacrifícios que ele fez naquela loja nos deram tudo o que precisávamos para ter sucesso. É onde as rugas em seu rosto se aprofundaram, onde seus sacrifícios moldaram a vida que temos agora. É por isso que recebemos uma boa educação, a oportunidade de buscar a excelência e a chance de criar vidas melhores para nós mesmos. Aquela loja é nosso legado, nossa fundação. É nosso nome, nossa reputação na cidade de Gaza.

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Meu pai costumava ser um madrugador cheio de energia que adorava sua rotina matinal—tomar café da manhã, beber seu café e ir direto para o trabalho. Ele passava oito horas por dia em sua loja, mesmo nos fins de semana, mantendo essa rotina sem falhas, sem reclamações.

Mas, desde que foi deslocado para o Egito, seus dias viraram de cabeça para baixo. Ele fica acordado a noite toda, olhando para o teto frustrado, e dorme até tarde. “Por que eu deveria acordar cedo?”, ele diz sempre que pergunto. “Eu não estou em Gaza.”

É de partir o coração ver como a ausência de sua loja, o lugar onde ele dedicou décadas de sua vida, o mudou. O senso de propósito que ele uma vez teve, o ritmo de sua vida diária, foi quebrado. Agora, ele luta com um sentimento de desorientação, e a simples alegria de acordar cedo, de ter uma rotina, evaporou.

A devastação de estar em um país estrangeiro, longe de tudo o que ele um dia teve, sem saber se ou quando voltará ao que construiu, está pesando profundamente sobre ele.

“Ele mudou muito. Parece sobrecarregado, sempre de mau humor”, minha tia me disse depois de visitar meu pai no Egito há alguns dias. O homem que costumava iluminar um ambiente com sua energia e otimismo agora parece carregar um fardo de tristeza pesado demais.

Quando as conversas sobre o cessar-fogo começaram em novembro de 2024, ele me ligou com um tom esperançoso. “Vamos passar o Ramadã em Gaza, Noor!”, ele disse, cheio de otimismo sobre a possibilidade de voltar para casa. Sua ansiedade era palpável, e, por um breve momento, parecia que um sonho poderia finalmente se realizar.

Um cessar-fogo foi acordado, e a questão do retorno dos deslocados ao norte de Gaza parecia resolvida. Mas a travessia de Rafah permaneceu um grande obstáculo, um que ainda se impõe e mantém o sonho de retornar fora de alcance.

À medida que as ameaças israelenses e americanas surgiam, ameaçando bloquear o retorno dos deslocados e cortar a possibilidade de voltar para Gaza, a esperança do meu pai se transformou em desespero. O pesadelo de que ele nunca mais poderá voltar para Gaza está consumindo-o. O medo de perder tudo o que ele trabalhou tanto para construir tornou-se seu companheiro constante.

Apesar de tudo o que ele perdeu, seu apego à sua loja e à sua terra natal permanece inabalável. “Eu quero voltar. Eu quero retornar”, ele repete, cada palavra carregada de saudade e desespero. Ele se agarra à esperança de que, um dia, voltará a entrar naquela loja, na vida que ele conhecia.

Desde outubro de 2023, a loja de tecidos do meu pai está fechada. O dono sente falta de sua loja, e a loja sente falta de seu dono. Todos os dias, as prateleiras vazias e os rolos de tecido parados parecem ecoar sua ausência. De certa forma, parece que tanto o homem quanto a loja estão esperando o momento em que possam se reunir—quando a porta da loja se abrirá novamente, e o burburinho da vida poderá continuar no lugar onde tudo começou.

* Escritora baseada em Gaza. Faz parte do coletivo de escritores baseados em Gaza We Are Not Numbers. Artigo publicado em 18/02/2025 em The Palestine Chronicle.

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