Netanyahu não é a causa do genocídio em Gaza. A causa é o sionismo
Reduzir a catástrofe em Gaza às ambições de um único homem ignora uma questão-chave: por que o público israelense continua apoiando essa guerra?

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu fala à imprensa no Capitólio, em Washington DC, em 8 de julho de 2025 (Reuters).
Abed Abou Shhadeh*
Uma reportagem extensa publicada recentemente no New York Times oferece aos leitores uma análise detalhada do genocídio em Gaza. A principal alegação feita pelos autores é que a continuação da guerra serve ao interesse pessoal do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, em se manter no poder.
Isso é especialmente relevante, dado seu julgamento em curso por corrupção e o duro golpe sofrido em sua reputação política após o fracasso militar de 7 de outubro. Segundo o artigo do Times, essa convergência de eventos levou Netanyahu a prolongar a guerra como estratégia de sobrevivência.
Mas essa narrativa, popular entre os círculos do sionismo liberal, reduz perigosamente a catástrofe em Gaza às ambições de um único homem.
Ela ignora o amplo apoio público em Israel não apenas ao genocídio em Gaza, mas também a ataques em toda a região. As ações militares de Israel — especialmente no contexto da violência sectária na Síria — só podem ser compreendidas como as de uma potência imperial que busca impor sua vontade à região por meio da força, da intimidação e da ameaça de expansão territorial.
Essa narrativa convenientemente ignora uma pergunta mais profunda: por que, após quase dois anos de imagens horríveis vindas de Gaza, o público israelense continua apoiando a guerra — e, de fato, exigindo sua intensificação?
Reação global
No centro do discurso público israelense hoje não está a moralidade da guerra, mas a questão de quem deve carregar o fardo de combatê-la. O principal debate gira em torno da convocação dos judeus ultraortodoxos, que até agora estiveram isentos do serviço militar e querem que isso seja garantido por lei.
O público secular e religioso-nacionalista exige “igualdade no sacrifício”, partindo do pressuposto de que a guerra deve continuar — apenas de forma mais justa.
Quando o partido ultraortodoxo asquenaze Judaísmo Unido da Torá anunciou recentemente sua saída do governo por causa da questão do alistamento, não se tratava de um protesto contra a guerra em si, mas de uma disputa sobre quem deveria combatê-la.
Esse enquadramento ocorre em um momento de crescente reação internacional. O movimento global de boicote penetrou na academia, com a Associação Sociológica Internacional pedindo recentemente a ruptura de laços com a Sociedade Sociológica Israelense por sua omissão diante do genocídio em Gaza.
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Boicotes culturais, embora menos visíveis, também estão em ascensão. Politicamente, o apoio dos EUA a Israel — antes bipartidário — agora é abertamente debatido em ambos os partidos. As discussões vão desde questões éticas relacionadas ao genocídio em Gaza até preocupações sobre a influência desproporcional que Israel exerce na política americana.
Ao mesmo tempo, israelenses comuns que viajam para o exterior estão enfrentando críticas globais pela primeira vez em suas vidas. No entanto, em vez de provocar reflexão, esse escrutínio levou muitos a um negacionismo ainda mais profundo.
Para grande parte do público israelense, o problema não é o que está acontecendo em Gaza — é o antissemitismo do mundo, tanto ocidental quanto oriental. Aos seus olhos, o mundo se voltou contra eles, e, portanto, nenhuma autocrítica é necessária.
A catástrofe em Gaza é possibilitada por um amplo consenso público, um judiciário que a legitima e uma cultura política que há muito desumaniza os palestinos.
Netanyahu, que viveu boa parte de sua juventude nos EUA, entende bem a política americana. Quando ele diz que a guerra em Gaza não “atingiu seus objetivos”, não está se referindo às condições no terreno, mas sim à sua posição nas pesquisas. Os recentes ataques ao Irã, apesar de não produzirem nenhum resultado estratégico, elevaram modestamente seus índices de aprovação.
Pior ainda, tanto os aliados de Netanyahu quanto sua suposta oposição conseguiram encorajar e normalizar uma retórica genocida, a ponto de ela se tornar dominante.
Segundo pesquisas recentes, 82% dos israelenses judeus apoiam a transferência (expulsão) da população de Gaza. Sem conseguir convencer outros países a aceitarem esses refugiados, o que está se formando é um campo de concentração de fato em Gaza.
Nesse contexto, discussões sobre um cessar-fogo são estruturalmente vazias. Israel já demonstrou — ao Hamas e a outros — que não cumpre acordos: nem em Gaza, nem no Líbano, nem na Síria. A diplomacia israelense é fundamentalmente baseada no poder militar e na capacidade unilateral de romper promessas.
Estratégias implacáveis
Mesmo com o público israelense cada vez mais impaciente com a guerra em Gaza, exigindo a libertação dos reféns e assistindo com preocupação ao crescente número de soldados mortos, é perturbador ver que ninguém questiona as estratégias implacáveis do Estado, que visam confinar milhões de palestinos em uma área que representa menos de um quarto de Gaza.
Há discussões abertas sobre a retomada do “Plano do General”, de Giora Eiland, que recomenda explicitamente o uso da fome como ferramenta de deslocamento forçado.
Mas a catástrofe em Gaza não é obra de um único homem. Ela é sustentada por um amplo consenso público, por um sistema judiciário que a valida e por uma cultura política que há muito se apoia na desumanização dos palestinos. Na Cisjordânia ocupada, a mesma lógica se repete: soldados, policiais e juízes israelenses ignoram ou até ajudam colonos a cometer pogroms contra palestinos.
A crise atual representa uma tentativa desesperada — por parte de alguns — de “salvar Israel de si mesma”, oferecendo aos israelenses uma escada para descer da árvore. A esperança é que Israel volte à sua postura pré-Netanyahu: negociações intermináveis, processos de paz retóricos e a fantasia de um Estado palestino que nunca foi realmente pretendido. Essa ilusão serviu bem ao mundo, permitindo que nações ocidentais defendessem as ações de Israel enquanto fingiam que a solução de dois Estados ainda era viável.
Mas a demografia e a ideologia mudaram. Israel não pode voltar atrás.
A escala da destruição em Gaza reabriu o cerne da questão palestina: o que acontece quando não há mais campos de refugiados, nem territórios para onde empurrar as pessoas, nem países dispostos a absorvê-las? A conversa então se volta — inevitavelmente — ao direito de retorno dos palestinos expulsos em 1948.
Culpar Netanyahu isoladamente é intelectualmente desonesto. Ele não é uma aberração, mas um produto da lógica sionista — uma lógica que sempre viu os palestinos como inferiores.
Sem enfrentar esse sistema de crenças fundamental, substituir Netanyahu não mudará nada. Podemos ter um líder menos agressivo, mais polido — mas a violência estrutural continuará, apenas em uma forma mais suave.
* Artigo publicado em 17/07/2025 no Middle East Eye.
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