Lula e o epitáfio da ética ocidental
No lustroso salão da ONU, dia 23 de setembro de 2025, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ergueu a voz contra o vitral do mito mais caro ao Ocidente: sua presumida superioridade ética. “Está sepultado”, disse, em tom de obituário. Não foi um improviso. Foi um ato calculado, como quem se levanta diante do túmulo de um império e arrisca dizer em voz alta aquilo que todos cochicham em corredores abafados: a moral ocidental é seletiva, a indignação tem fronteiras e a compaixão conhece passaporte.
Os ecos não são novos. Basta lembrar do Holocausto euro-judeu. Enquanto os campos de extermínio eram erguidos com eficiência burocrática e os trens despejavam milhões no coração da indústria da morte, as potências ocidentais demoraram demais a reconhecer, reagir, admitir o inominável. É verdade que havia censura, cortinas de fumaça, dificuldade de acreditar que a civilização europeia pudesse chegar àquela forma monstruosa de racionalidade aplicada à matança. Mas havia também conveniência: só se abriu a boca quando a vitória militar já era iminente. Antes disso, preferiu-se não olhar fundo no abismo.
Hoje, porém, o horror não está escondido em florestas polonesas nem nos relatórios de inteligência militar. O genocídio em Gaza, seja qual for o nome que tentem dar para disfarçá-lo, é televisionado, transmitido ao vivo, acessível em cada tela de celular. Não há desculpa de ignorância ou véu de segredo. As crianças soterradas, hospitais bombardeados, gritos que atravessam os cabos de fibra ótica e chegam às salas de estar de Paris, Washington ou Brasília. A alegação de “não sabíamos” cai por terra, esmigalhada. E, no entanto, a reação continua sendo a mesma: tímida, calculada, condicionada a interesses estratégicos.
O Ocidente que disse “nunca mais” em 1945, encontra sempre um modo de dizer “talvez outra vez”, quando a geopolítica aperta.
Zygmunt Bauman, um europeu judeu que sobreviveu ao estilhaço da Europa, nomeou isso de horror inadministrável. O horror que escapa às categorias, que explode os limites da gestão racional. Mas eis a ironia: o Ocidente conseguiu administrar até o inadministrável. Criou protocolos, conselhos de segurança, relatórios com gráficos. Transformou a Shoah em museu e monumento, domesticando o trauma em narrativas pedagógicas.
Hoje faz o mesmo com Gaza: gerencia a tragédia em comissões de inquérito, administra os mortos em estatísticas, organiza a barbárie em tabelas para que a consciência não sangre.
É nesse ponto que Giorgio Agamben oferece o bisturi mais afiado. Para ele, a figura do homo sacer, ser humano reduzido à vida nua, matável, mas não sacrificável, retorna em cada campo de concentração, fronteira onde refugiados são barrados, território onde vidas são classificadas como descartáveis. Gaza é o campo contemporâneo por excelência: não porque repete Auschwitz, mas porque atualiza sua lógica. O Ocidente, que gosta de se imaginar guardião dos Direitos Humanos, assiste a esse campo expandido em tempo real e, ainda assim, insiste em defender sua aura ética.
Ironia das ironias, foi o Ocidente que pariu a ONU, redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos e que teorizou a “paz perpétua” de Kant. Foi a tradição ocidental que forjou o léxico com que denunciamos hoje a barbárie. E, no entanto, essa mesma tradição se revela incapaz de aplicar a si mesma os princípios que proclama.
Os direitos do homem são universais… exceto quando o homem é palestino. A paz perpétua é um ideal… exceto quando a indústria bélica precisa girar. A dignidade humana é inalienável… exceto quando ameaça alianças estratégicas.
É aqui que a ironia se converte em sarcasmo inevitável. O Ocidente gosta de repetir a palavra “universal” com a boca cheia, mas sua ética é como senha de Wi-Fi: funciona só para quem tem a chave. No holocausto euro-judeu, aliás, ocidental também e em terras ocidentais, alegava-se ignorância. Em Ruanda, fingia-se surpresa. No Congo, dizia-se que era complicado. Em Angola, preferiu-se o silêncio. Agora, em Gaza, não há sequer como fingir. Tudo está aí, na tela, ao vivo, sem edição. E o que se ouve? Gritos e desespero humano. A mesma ladainha de comissões de investigação, notas diplomáticas mornas, discursos indignados que não movem um soldado, nem suspendem um contrato de armas.
Bauman avisou: o horror não cabe nas prateleiras da razão. Mas o Ocidente insiste em criar novos móveis para organizar sua sala de horrores. Agamben revelou: a modernidade vive do estado de exceção permanente. Mas o Ocidente veste esse estado de exceção com gravata e selo da ONU.
O resultado é esse teatro que chamamos de “comunidade internacional”: um palco em que todos fingem não ouvir os gritos porque o script exige calma diplomática.
Eis, portanto, a tragédia com sabor de farsa: o mito da superioridade ética ocidental morreu, junto com o Deus Cristão, mas ninguém avisou aos cadáveres. Todavia, eles ainda circulam pelas cúpulas internacionais, com perfume caro mascarando o cheiro de sua decomposição.
Quando Lula, em Nova York, proclamou o sepultamento, não estava apenas atacando a hipocrisia alheia; estava lendo em voz alta a certidão de óbito que todos escondem na gaveta. Mas é preciso acrescentar: se o mito da ética ocidental está morto, o legado continua de pé, como uma herança contraditória. Afinal, sem Kant, Grócio, Declaração de 1789 e de 1948, sequer teríamos as palavras para acusar a duplicidade. O Ocidente é culpado da própria acusação: criou os instrumentos que o desmascaram. E talvez seja isso o que mais irrita seus defensores: não é o “anti-ocidente” que denuncia, é o próprio Ocidente em sua consciência dividida.
Resta a ironia final, amarga como fel: a cada genocídio televisionado, o Ocidente ensaia sua indignação seletiva, convencido de que ainda pode nos ensinar a ética universal. Mas quem o ouvirá? Quem acreditará na pedagogia de um mestre que repete lições com a boca e as desmente com as mãos sujas de pólvora?
Talvez o maior gesto ético que o Ocidente poderia oferecer ao mundo, neste momento, seria um simples reconhecimento: não somos superiores, não fomos no passado e nunca seremos no futuro. E, quem sabe, a partir desse reconhecimento, abrir espaço para uma ética verdadeiramente plural, sem centro hegemônico, sem “norte moral”. Até lá, o mito seguirá sendo enterrado todos os dias, com cada bomba que cai sobre Gaza, cada silêncio diante da África ou fronteira fechada a refugiados.
O Ocidente, esse velho ator de tragédia, ainda tenta declamar seus versos clássicos, mas a plateia, cansada, já percebeu que a peça é farsa, conforme tão bem descreveu Kant: “Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.