A atuação da USAID para descaracterizar a luta dos palestinos contra a ocupação “israelense”
Assim como outras formas de assistência dos EUA, a USAID visava normalizar a colonização da Palestina

Um outdoor da USAID fica em uma estrada perto de um posto de controle militar na Cisjordânia ocupada por Israel em 3 de maio de 2024 [arquivo: Reuters/Shannon Stapleton]
Por Samer Jaber*
A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) abriu seu escritório na Palestina em 1994. Seu site, que não está mais disponível, costumava se gabar de que, desde então, “ajudou quatro milhões de palestinos a terem vidas mais saudáveis e produtivas”.
Agora que a agência foi fechada pelo governo do presidente americano Donald Trump, é pertinente avaliar a alegação de que a USAID foi uma força do bem nos territórios palestinos ocupados.
Sem dúvida, o fechamento da agência afetou os palestinos, especialmente aqueles que se beneficiam de seu financiamento para instituições de educação e saúde. A provisão humanitária também foi afetada, com o Programa Mundial de Alimentos (WFP), um dos principais atores humanitários nos territórios palestinos ocupados, enfrentando grandes interrupções.
Embora o impacto negativo a curto prazo seja evidente, a utilidade da USAID e de outros financiamentos americanos torna-se questionável quando colocada no contexto político mais amplo da ocupação israelense da Palestina.
Como pesquisador, tenho me envolvido direta e indiretamente na avaliação de programas financiados pela USAID há anos e vi em primeira mão como eles contribuíram para a manutenção da ocupação e colonização israelenses. A agência americana estava longe de “ajudar” os palestinos a terem uma vida melhor, como afirmava.
Uma política de pacificação
A USAID abriu seu escritório na Cisjordânia e na Faixa de Gaza como parte de um esforço americano mais amplo para liderar e moldar o acordo político entre palestinos e israelenses, iniciado pelos Acordos de Oslo de 1994.
O chamado “processo de paz” prometia aos palestinos um Estado independente nas terras ocupadas por Israel em 1967, com um acordo final previsto para ser assinado em 1999. É desnecessário dizer que tal acordo nunca foi assinado, visto que Israel nunca pretendeu firmar a paz com os palestinos e reconhecer seu direito à autodeterminação.
Em vez disso, Oslo foi usada para encobrir a colonização implacável dos territórios palestinos ocupados por Israel, na retórica das negociações de paz. A criação da Autoridade Palestina (AP) como um órgão governamental local encarregado de administrar os assuntos civis dos palestinos em áreas designadas fazia parte dessa estratégia.
Embora a liderança oficial palestina tenha concebido a AP como um governo de transição que administraria a vida cotidiana até que um Estado independente fosse estabelecido, ela foi, em última análise, concebida e supervisionada de perto pelos EUA para funcionar como um regime cliente, administrando e controlando a população ocupada.
Para tanto, a AP foi obrigada a manter uma estreita coordenação com as forças de segurança israelenses para suprimir qualquer forma de resistência nos territórios sob sua administração. Seus dois principais órgãos de segurança – o Serviço de Inteligência e a Segurança Preventiva – foram criados para cumprir essa função.
Enquanto as agências de inteligência dos EUA tinham a tarefa de dar suporte e treinar o aparato de segurança palestino — canalizando milhões de dólares para ele todos os anos — a USAID tinha a tarefa de dar suporte às funções civis da AP.
Entre 1994 e 2018, a USAID forneceu mais de US$ 5,2 bilhões em ajuda aos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Financiou iniciativas de infraestrutura, saúde e educação, com o objetivo de obter apoio público para as negociações de paz.
Parte de seu financiamento foi canalizada por meio de organizações da sociedade civil com dois objetivos principais: despolitizar o conflito israelense-palestino e cultivar uma rede de atores da sociedade civil que promovessem essa agenda.
A estrutura de despolitização tratou a questão palestina como uma questão econômica e humanitária. Essa abordagem abordou os problemas econômicos e sociais palestinos isoladamente — desvinculada de sua causa principal: a ocupação israelense.
Também buscou deslegitimar a resistência palestina, retratando-a como uma fonte de instabilidade e caos, em vez de uma resposta política à ocupação.
Para distribuir seu financiamento, a USAID estabeleceu um sistema complexo de verificação de antecedentes, juntamente com um conjunto orwelliano de condições. A verificação se estendia além do indivíduo, incluindo sua família extensa, o nome do lugar e até mesmo o contexto cultural em que os fundos seriam usados — nenhum dos quais poderia ser associado à resistência.
Nesse contexto, não é de se surpreender que os programas da USAID frequentemente falhassem em melhorar a vida dos palestinos comuns.
Normalização por meio de programas interpessoais
Grande parte do financiamento da USAID foi destinada a iniciativas que buscavam normalizar a colonização israelense, buscando estabelecer conexões entre palestinos e israelenses. A premissa era que os dois povos “podem aprender a conviver”, o que, obviamente, ignorava completamente as realidades do apartheid e da ocupação.
Um dos programas financiados pela USAID que avaliei foi o Programa de Gestão e Mitigação de Conflitos (CMM), promovido no âmbito da Parceria entre Pessoas da USAID. Até 2018, o CMM havia alocado mais de US$ 230 milhões para diferentes iniciativas e estava previsto para distribuir outros US$ 250 milhões até 2026.
O programa incluía projetos voltados para pais, agricultores e estudantes enlutados, com o objetivo de promover a construção da paz. Um desses projetos buscava fomentar a cooperação entre agricultores palestinos e israelenses por meio de experiências agrícolas compartilhadas.
Durante uma discussão em grupo focal, conversei com um agricultor palestino que explicou que a produção palestina de azeite de oliva está estagnada devido ao regime de ocupação israelense, que restringiu o acesso dos agricultores palestinos à água e, em alguns casos, às suas terras. “Esses programas”, disse ele, “não abordam essas questões”.
Quando perguntei por que ele participou, ele explicou que o projeto lhe permitiu obter uma autorização de viagem israelense — permitindo-lhe trabalhar em fazendas israelenses e obter renda para sobreviver.
O absurdo dessa dinâmica era impressionante: no papel, o programa falava em promover relações produtivas entre palestinos e israelenses, construindo um futuro compartilhado e pacífico, onde agricultores se tornam amigos. Na realidade, porém, os agricultores palestinos assinaram para poderem obter uma autorização de viagem e trabalhar em fazendas israelenses — muitas das quais estavam estabelecidas em terras palestinas confiscadas. A participação no programa não resolveu nenhum dos problemas que os agricultores palestinos enfrentavam no cultivo de azeitonas — ou seja, as políticas de ocupação israelenses.
Outro programa financiado pela USAID que estudei, o Sementes da Paz, tinha a missão de reunir jovens de regiões em conflito com potencial para se tornarem futuros líderes em seus países. A atividade central do programa era um acampamento de verão para jovens em uma área rica no estado americano do Maine, onde os participantes se engajavam em diálogos e treinamentos de liderança.
Os dois maiores grupos de participantes eram israelenses e palestinos. Enquanto o Ministério da Educação de Israel era responsável pela seleção dos participantes israelenses, o escritório do Sementes da Paz em Ramallah supervisionava o recrutamento de participantes palestinos. Cada participante se beneficiava de um programa altamente subsidiado, com custos que chegavam a US$ 8.000 por pessoa.
Uma análise mais atenta das listas de participantes ao longo dos anos revelou um padrão impressionante: filhos e filhas de líderes da AP e de famílias ricas apareciam com frequência.
Curioso sobre esse padrão, certa vez perguntei a um responsável do programa sobre ele. A resposta foi reveladora: “Na sociedade palestina, a liderança frequentemente passa para os filhos de altos funcionários.”
Isso significava que a visão da organização — e, por extensão, dos EUA — sobre a liderança política na Palestina pressupunha que o poder na política palestina é hereditário e, portanto, as iniciativas dos EUA deveriam se concentrar nos filhos e filhas da elite atual.
Interferência política
O Seeds of Peace não foi, de longe, o único programa que serviu para apoiar quadros da AP e suas famílias. Alguns parentes de altos funcionários receberam tratamento preferencial na obtenção de contratos lucrativos com a USAID; outros lideraram organizações sem fins lucrativos financiadas pela agência.
A USAID também se envolveu indiretamente no cenário político palestino, apoiando atores políticos favorecidos por Washington.
Entre 2004 e 2006, implementou um amplo programa de promoção da democracia nos territórios palestinos, em preparação para as eleições legislativas de 2006. Embora não haja evidências diretas de apoio financeiro a candidatos ou listas partidárias específicas, observadores notaram que organizações da sociedade civil (OSCs) ligadas ao Fatah ou a candidatos da Terceira Via receberam financiamento da USAID. Em alguns casos, esse apoio foi canalizado por meio de organizações que operam em setores não relacionados.
Apesar de financiamento substancial e apoio político, esses grupos não conseguiram garantir assentos suficientes para impedir a vitória eleitoral do Hamas. Após a tomada do controle de Gaza pelo Hamas, a USAID continuou a apoiar as OSC palestinas, aumentando drasticamente seu financiamento em alguns casos.
A USAID também apoiou a força policial sob a Autoridade Palestina por meio de programas de Estado de Direito, embora a maior parte do financiamento para o aparato de segurança repressiva da Autoridade Palestina tenha vindo da CIA e do Controle Internacional de Narcóticos e Aplicação da Lei (INCLE) do Departamento de Estado dos EUA.
Um exemplo mais recente e flagrante de envolvimento problemático da USAID é o píer defeituoso construído pelo exército americano em 2024 para facilitar a entrega de ajuda humanitária a Gaza, a um custo de US$ 230 milhões. O projeto foi promovido como uma iniciativa humanitária e a USAID foi uma das organizações encarregadas de distribuir o pequeno volume de ajuda que chegava por meio dele.
Na realidade, o píer serviu como um golpe de relações públicas do governo do ex-presidente americano Joe Biden para ocultar a cumplicidade dos EUA no bloqueio israelense a Gaza. Também foi usado pelos militares israelenses em uma operação que resultou na morte de mais de 200 palestinos, levantando sérias questões sobre a militarização e o uso indevido da infraestrutura de ajuda humanitária.
A farsa do píer é uma boa ilustração da abordagem dos EUA para fornecer ajuda aos palestinos: nunca foi feita em seu melhor interesse.
É verdade que alguns palestinos empobrecidos podem ser afetados pelo encerramento das operações da USAID na Cisjordânia e em Gaza. No entanto, é improvável que isso altere decisivamente a situação no terreno. O corte da ajuda terá um impacto mais drástico na estratégia dos EUA de alavancar organizações da sociedade civil palestina para promover uma agenda de pacificação e perpetuar a retórica vazia sobre a paz.
Nesse sentido, o encerramento da USAID pode dar à sociedade civil palestina a oportunidade de reconsiderar seu envolvimento com os doadores do governo americano, à luz de suas obrigações morais para com o povo palestino. Milhões investidos na pacificação claramente não funcionaram; é hora de uma nova abordagem que realmente sirva aos interesses dos palestinos.
* Samer B Jaber é pesquisador de doutorado especializado em economia política na Royal Holloway, Universidade de Londres. Ele também é membro do Conselho para Acadêmicos em Risco (CARA). Seu foco é o mundo árabe e a região do Oriente Médio. Artigo publicado na Al Jazeera em 26/04/2025.
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