As bibliotecas de Gaza ressurgirão das cinzas
A destruição em massa de bibliotecas é um ataque direto à identidade palestina e ao espírito de aprendizado.
18/12/2024Uma foto da Biblioteca Maghazi no campo de refugiados de Maghazi na Faixa de Gaza [Cortesia de Shahd Alnaami]
Por Shahd Alnaami*
Eu tinha cinco anos quando entrei na Biblioteca Maghazi pela primeira vez. Meus pais tinham acabado de me matricular no jardim de infância próximo, especificamente porque estava enviando seus alunos para a biblioteca para visitas regulares. Eles acreditavam no poder transformador dos livros e queriam que eu tivesse acesso a uma grande coleção o mais cedo possível.
A Biblioteca Maghazi não era apenas um prédio; era um portal para um mundo sem fronteiras. Lembro-me de sentir uma sensação avassaladora de admiração ao cruzar sua porta de madeira. Era como se eu tivesse entrado em um reino diferente, onde cada canto sussurrava segredos e prometia aventuras.
Embora modesta em tamanho, a biblioteca parecia infinita aos meus olhos jovens. As paredes eram forradas com prateleiras de madeira escura, cheias de livros de todos os formatos e tamanhos. No centro da sala havia um aconchegante sofá amarelo e verde, cercado por um tapete simples onde nós, as crianças, nos reuníamos.
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Ainda me lembro vividamente de nossa professora nos pedindo para sentar ao redor dela no tapete e abrir um livro de imagens. Fiquei encantado com suas ilustrações e letras, embora ainda não soubesse ler.
As visitas à Biblioteca Maghazi incutiriam em mim um amor pelos livros que influenciaram profundamente minha vida. Os livros se tornaram mais do que uma fonte de entretenimento ou aprendizado; eles nutriram minha alma e mente, moldando minha identidade e personalidade.
Esse amor se transformou em dor quando bibliotecas em toda a Faixa de Gaza foram destruídas, uma após a outra, nos últimos 400 dias. De acordo com as Nações Unidas, 13 bibliotecas públicas foram danificadas ou destruídas em Gaza. Nenhuma instituição conseguiu estimar a destruição das outras bibliotecas – aquelas que fazem parte de centros culturais ou instituições educacionais ou são entidades privadas – que também foram destruídas.
Entre elas está a biblioteca da Universidade de Al-Aqsa – uma das maiores da Faixa de Gaza. Ver as imagens de livros queimando na biblioteca foi de partir o coração. Parecia fogo queimando meu próprio coração. A biblioteca da minha própria universidade, a Universidade Islâmica de Gaza, onde passei inúmeras horas lendo e estudando, também não existe mais.A Biblioteca Edward Said – a primeira biblioteca de língua inglesa em Gaza, criada após a guerra israelense de 2014 em Gaza, que também destruiu bibliotecas – também desapareceu. Essa biblioteca foi fundada por indivíduos privados, que doaram seus próprios livros e trabalharam contra todas as probabilidades para importar novos, já que Israel frequentemente bloqueava entregas formais de livros para a Faixa. Seus esforços refletem o amor palestino por livros e o desejo de compartilhar conhecimento e educar comunidades.
Os ataques às bibliotecas de Gaza não visam apenas os edifícios em si, mas a própria essência do que Gaza representa. Eles são parte do esforço para apagar nossa história e impedir que as gerações futuras se tornem educadas e conscientes de sua própria identidade e direitos. A dizimação das bibliotecas de Gaza também visa destruir o forte espírito de aprendizado entre os palestinos.
O amor pela educação e pelo conhecimento está profundamente enraizado na cultura palestina. Ler e aprender são valorizados entre gerações, não apenas como meios de adquirir sabedoria, mas como símbolos de resiliência e conexão com a história.
Os livros sempre foram vistos como objetos de alto valor. Embora o custo e as restrições de Israel muitas vezes limitassem o acesso aos livros, o respeito por eles era universal, atravessando fronteiras socioeconômicas. Até mesmo famílias com recursos limitados priorizavam a educação e a narração de histórias, transmitindo uma profunda apreciação pela literatura aos seus filhos.
Mais de 400 dias de privação severa, fome e sofrimento conseguiram matar um pouco desse respeito pelos livros.
É doloroso dizer que os livros agora são usados por muitos palestinos como combustível para fogueiras para cozinhar ou se aquecer, já que madeira e gás se tornaram proibitivamente caros. Esta é a nossa realidade de partir o coração: a sobrevivência vem ao custo da herança cultural e intelectual.
Mas nem toda a esperança está perdida. Ainda há esforços para preservar e salvaguardar o pouco que resta da herança cultural de Gaza.
A Biblioteca Maghazi — o paraíso dos livros da minha infância — ainda está de pé. O prédio permanece intacto e, com esforços locais, seus livros foram preservados.
Recentemente tive a oportunidade de visitá-la. Foi uma experiência emocionalmente avassaladora, pois não a visitava há muitos anos. Quando entrei na biblioteca, senti como se estivesse retornando à minha infância. Imaginei o “pequeno Shahd” correndo entre as prateleiras, cheio de curiosidade e desejo de descobrir tudo.Eu quase conseguia ouvir os ecos das risadas dos meus colegas do jardim de infância e sentir o calor dos momentos que passamos juntos lá. A memória da biblioteca não está apenas em suas paredes, mas em todos que a visitaram, em cada mão que folheou um livro e em cada olho que mergulhou nas palavras de uma história. A Biblioteca Maghazi, para mim, não é apenas uma biblioteca; é parte da minha identidade, daquela garotinha que aprendeu que a imaginação pode ser um refúgio e que a leitura pode ser resistência.
A ocupação está mirando em nossas mentes e nossos corpos, mas não percebe que as ideias não podem morrer. O valor dos livros e bibliotecas, o conhecimento que eles carregam e as identidades que eles ajudam a moldar são indestrutíveis. Não importa o quanto eles tentem apagar nossa história, eles não podem silenciar as ideias, a cultura e a verdade que vivem dentro de nós.
Em meio à devastação, tenho esperança de que, quando o genocídio terminar, as bibliotecas de Gaza renascerão das cinzas. Esses santuários de conhecimento e cultura podem ser reconstruídos e se erguer novamente como faróis de resiliência.
* Shahd Alnaami é uma escritora palestina radicada em Gaza. Ela estuda literatura inglesa e tradução na Universidade Islâmica de Gaza, atualmente vivendo em meio às dificuldades do genocídio. Artigo publicado na Al Jazeera em 14/12/2024.
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