Entrevista: “israel” é o maior promotor de antissemitismo na atualidade, diz pesquisador
Pedro Lima Vasconcellos lança nos próximos dias o livro “A questão palestina: a nervura religiosa da catástrofe”

Pedro Lima Vasconcellos, autor do livro “A questão palestina: a nervura religiosa da catástrofe”
Já está em pré-venda o livro “A questão palestina: a nervura religiosa da catástrofe”, de Pedro Lima Vasconcellos. Percorrendo os mais de 3 mil anos de história da Palestina, o acadêmico demonstra que a luta do povo palestino, o genocídio e limpeza étnica continuados (com seu ápice na atualidade, em Gaza) e a opressão exercida pelo “estado” de “israel” só podem ser perfeitamente compreendidos a partir de uma visão de longo alcance histórico.
“O território palestino, desde milênios, vem sendo um palco de muitas disputas que envolvem território, política, religiões convivendo, tensionando, interagindo, opondo-se. É fundamental não ignorar esses elementos. O livro, portanto, é uma apresentação desses elementos que, em geral, costumam ser colocados em segundo plano, mas que jogam um papel muito importante na configuração dessa conjuntura terrível que estamos presenciando em tempo real”, afirma Vasconcellos na entrevista concedida ao site da Fepal e publicada abaixo.
Pedro Lima Vasconcellos é licenciado em Filosofia, bacharel e mestre em Teologia, mestre e livre-docente em Ciências da Religião, doutor em Antropologia e pós-doutor em História. Foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica e é membro do Observatório de Religiões Comparadas da Universidade de Sevilha (Espanha) e do Toro – Escola de Psicanálise. Também é professor associado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.
O livro “A questão palestina: a nervura religiosa da catástrofe” também terá uma série de lançamentos pelo país. O primeiro deles ocorrerá no dia 6 de agosto, às 20h, no Toro – Escola de Psicanálise (Rua Manoel Lins Calheiros, 201 – Gruta de Lourdes, Maceió).
Inscreva-se em nosso canal no Youtube!
Qual o eixo central do livro?
O livro procura mostrar como se configurou, do ponto de vista da longa história (uma história de mais de 3 mil anos), o que hoje nós chamamos de “A Questão Palestina”. Ela resulta de uma solução, definida desde o início do século XX, culminando no final da Segunda Guerra Mundial, para a “Questão Judaica”, com a qual se defrontavam figuras importantes, pensadores europeus do século XIX, como, por exemplo, Karl Marx, que escreveu um texto intitulado “Sobre a Questão Judaica”.
As injunções políticas, os interesses do imperialismo britânico e depois estadunidense conduziram, a partir do trauma representado pela revelação dos crimes do holocausto nazista, a esta solução para a Questão Judaica: transformar a Palestina num Estado judeu – ou, como dizia a infame Declaração Balfour, do governo britânico em 1917, estabelecer na Palestina “um lar nacional para o povo judeu”. E, assim resolvido ou encaminhado o problema judeu, estabeleceu-se a “Questão Palestina”.
Mas eu também procuro mostrar ao longo do livro que os elementos que constituem essa questão não podem ser considerados apenas em função da conjuntura mais recente. O território palestino, desde milênios, vem sendo um palco de muitas disputas que envolvem território, política, religiões convivendo, tensionando, interagindo, opondo-se. É fundamental não ignorar esses elementos. O livro, portanto, é uma apresentação desses elementos que, em geral, costumam ser colocados em segundo plano, mas que jogam um papel muito importante na configuração dessa conjuntura terrível que estamos presenciando em tempo real – o genocídio do povo palestino, particularmente em Gaza mas também na Cisjordânia, executado pelo sionismo.
O que você acha da caracterização do conflito como sendo motivado por questões religiosas?
Essa questão tem um problema na sua origem. Estão em jogo muitas coisas: território, convivência entre grupos culturais de tradições distintas, mas também um conjunto de questões religiosas. Não é possível ignorar isso. E não é que essas instâncias operem como se fossem camadas ou como se fossem gavetas separadas umas das outras. Não, elas atravessam-se umas às outras. Considerando isso, não é possível ignorar a centralidade decisiva que os componentes religiosos têm na configuração da Questão Palestina. Afinal de contas, nós temos nesse território o nascedouro de inúmeras expressões religiosas presentes no mundo inteiro, incluindo as três mais conhecidas (o cristianismo, o judaísmo e o islã). Este último, inclusive, se origina de um caldo de culturas que tem na Palestina um lugar de destaque.
O histórico religioso não ficou no passado, ele se mantém incisivo no presente. Não à toa talvez o símbolo maior dessa presença do religioso em múltiplas dimensões seja a existência de Jerusalém (al-Quds), a cidade sagrada, como uma cidade com um histórico marcado por essas dinâmicas religiosas, entre conflitos e interações. Esse histórico é tão impactante que, quando a ONU, em 1947, decidiu por aquele projeto infame de partição do território palestino para a constituição do que deveriam ser dois Estados – o sionista e o palestino – não se sabia o que fazer com Jerusalém. Então, se decidiu por um estatuto diferenciado para essa cidade. Ela deveria ser gerida por uma administração internacional, coisa que os sionistas logo trataram de inviabilizar. Mas insisto: não foi à toa que se entendeu que Jerusalém deveria ser pensada a partir de outras categorias, justamente por ser um local ocupado por tantas religiões e a sua importância para as crenças de judeus, cristãos e muçulmanos espalhados pelo mundo inteiro.
Então, não se trata de reduzir a questão à religião ou dizer que não se trata de uma questão religiosa. Essa polarização é enganosa e ajuda pouco no esforço de entender a complexidade do tema.
A Palestina já foi uma terra habitada somente pelos judeus?
Não. O termo “judeu” vem de Judeia, que, por sua vez, vem do nome Judá. Na sua origem, a partir dos textos judaicos, a Tanakh, e que estão contidos na Bíblia cristã, Judá é o nome de um patriarca, um dos filhos de Jacó. A ele é atribuída uma área da antiga Palestina, na região mais ao sul, na parte montanhosa. Nem mesmo a cidade de Jerusalém, a rigor, faria parte do território de Judá, a depender das avaliações que pesquisas arqueológicas vêm fazendo. Em algum momento, essa tribo teria se tornado um reino (o reino de Judá), que depois foi destruído e, em um certo momento, esse nome ganha uma formulação grega (Judeia), de onde vem o termo “judeu”. Daí vem o nome de uma religião que se configura tendo como centro esse território e a cidade de Jerusalém, então já incorporada a ele.
Mas durante todo o período da história narrada nos textos da Bíblia Israel era uma coisa e Judá era outra. Israel era a nomenclatura para designar uma área montanhosa na Palestina, mas ao norte. Durante um certo tempo existiram dois reinos ora conflitantes, ora aliados: o reino de Israel e o reino de Judá. Eles se encontravam basicamente nas regiões montanhosas da Palestina, não naquelas próximas ao Mar Mediterrâneo. Parte delas, apenas durante certos períodos, foi chamada eventualmente de Israel – em outros tempos configuraram um reino conhecido por Judeia, governado a partir de Jerusalém. As nomenclaturas variam de acordo com a conjuntura histórica, mas se pode dizer que nunca o território palestino esteve habitado exclusivamente por judeus, em qualquer tempo da história nele vivida.
Inclusive, temos uma história quase apagada, nos estudos e também atualmente, de um grupo de algumas centenas de pessoas que vivem atualmente na Cisjordânia, que é o povo samaritano. Eles são retratados nas próprias escrituras judaicas. E esse povo sobrevive até hoje e não se entende como judeus, mas sim como Israel.
A Palestina, desde que esse nome foi invocado – há mais de 3 mil anos – é um espaço que, embora pequena geograficamente, é extremamente rico em culturas, tradições, religiões e nunca foi exclusivo dos judeus, sua população nunca se identificou inteiramente como judia.
Ao longos dos milênios a Palestina era uma terra multiétnica?
Sim, e continua sendo, apesar de todo o horror que se estabeleceu no território palestino com o início da aplicação do projeto sionista pelo imperialismo britânico. Ela sempre foi e continua sendo multiétnica, multicultural e multirreligiosa. E esse é um elemento absolutamente decisivo na constituição da Questão Palestina.
Em algum momento da história foi realizada uma política de Estado étnico, expulsão em massa de um povo e dominação cultural como a que vemos ser aplicada pelo atual “estado” de “israel”?
Há textos na Tanakh, na escritura judaica, que dão a ideia de que, para a formação de Israel, há 3.200 anos, teria sido desenvolvida uma política de extermínio das populações até então residentes no território. Isso se lê particularmente no Livro de Josué. Mas essa é apenas a impressão geral quando se lê o livro. Quando se lê esse livro com cuidado, e quando se o compara com outros textos que também constituem a Tanakh, se veem relatos muito diferentes. Eles dizem, por exemplo, que as tribos de Israel se formaram convivendo com os povos que já habitavam a região.
Trata-se, obviamente, de olhares para o passado registrados por aqueles cronistas responsáveis por tais textos que não coincidem nesse detalhe fundamental. Mas, seguramente, na apropriação que o sionismo faz das tradições judaicas, do sequestro que ele faz, há uma priorização absoluta da narrativa do Livro de Josué, que – insisto, de maneira panorâmica – sugere que a formação de Israel teria ocorrido às custas do extermínio das populações residentes no território. Contudo, a Tanakh não é unânime em afirmar que essa política tenha sido adotada; há narrações que sugerem outros processos pelos quais Israel emergiu na Palestina.
E como você reage quando Benjamin Netanyahu invoca passagens de escrituras sagradas para justificar suas ações contra os palestinos?
Ele não está inovando. Talvez ele seja apenas a expressão mais truculenta de um um apelo a passagens das Escrituras judaicas na implantação de um projeto político que, desde a sua matriz, é segregacionista e supremacista, com propósitos de limpeza étnica e, em última instância, de genocídio, como estamos vendo em Gaza.
É pouco conhecido, mas o “fundador” do “estado” de “israel”, o primeiro primeiro-ministro do “estado” sionista, David Ben Gurion, se apresentava como um sionista secular, ou seja, não religioso. Eu costumo dizer que essa expressão, sionista não religioso, é quase uma contradição em termos, porque o próprio termo sionismo carrega uma referência religiosa inescapável. Porque Sião era o nome de uma colina na cidade de Jerusalém à qual está associada a construção do Templo de Jerusalém. Muitas vezes, nas escrituras judaicas Sião é sinônimo do templo. E, por extensão, Sião acaba designando a cidade de Jerusalém e, como consequência, o próprio território da Palestina que se pretende converter em “israel”.
Mas Ben Gurion costumava reunir em seu gabinete periodicamente, durante um bom tempo enquanto era primeiro-ministro, figuras da política israelense para estudar a Tanakh, em particular o Livro de Josué. Ben Gurion escreveu em alguns textos que o patrono do exército de “israel” é Josué e que as campanhas militares de “israel” se inspiravam nas campanhas de Josué. De sorte que não é novidade que esse tipo de invocação seja feita hoje por Netanyahu e outras figuras deletérias de seu gabinete.
Há outros exemplos, como aquele do final da Guerra dos Seis Dias, quando o “estado” sionista ocupa militarmente todo o território palestino, em que é feita uma medalha comemorativa em referência aos 50 anos da Declaração Balfour, com a efígie de Lorde Baufour de um lado e de outro uma oliveira com uma frase extraída do Livro dos Gênesis (“Esta é a terra que eu lhe prometi como herança”), que Deus teria dito a Abraão. No sionismo, essa frase é entendida como uma determinação divina de que aquela terra, a da Palestina, deveria ser ocupada única e exclusivamente pelos descendentes de Abraão – mas não todos, apenas os que descenderiam de seu filho Isaque e seu neto Jacó.
Há também a referência a Amaleque, que na tradição judaica designaria o inimigo por excelência de Israel. Ora, as referências a Amaleque para designar o inimigo palestino percorrem a existência do “estado” sionista. Não é uma invenção de Netanyahu. Ele apenas dá continuidade à interpretação supremacista e genocidária de textos da escritura judaica.
Há algum sentido em considerar as críticas e oposições ao Estado de Israel como antissemitas?
Uma coisa é semita/antissemita. Outra coisa é judaísmo/antijudaísmo. E outra é sionismo/antissionismo. Muitas vezes, costuma-se confundir essas expressões, transformando o povo judeu no único povo semita e, portanto, qualquer crítica que se lance a esse povo é classificada como antissemitismo. E há que se diferenciar o povo judeu do Estado judeu. Na quase totalidade das vezes, as críticas que são qualificadas como antissemitas não são dirigidas ao povo judeu, mas ao Estado judeu, que é o “estado” sionista. Então há que distinguir judaísmo de sionismo. Há muitas correntes no judaísmo que são antissionistas.
Sobre o antissemitismo, é preciso dizer em alto e bom som: as maiores expressões de antissemitismo na contemporaneidade vêm sendo promovidas pelo “estado” sionista, porque o povo palestino é um povo semita. O que são os semitas? De acordo com a mitologia baseada nos textos judaicos e na Bíblia, semitas são os povos que, vivendo na região do Sudoeste Asiático (mal chamado de Oriente Médio), são descendentes de Sem – um dos filhos de Noé. Na geografia, durante muito tempo, se pensava que a humanidade era dividida em três eixos: os camitas na África, os jafetitas na Europa e os semitas na Ásia, dizendo de forma muito genérica. Então, os povos semitas são os que vivem naquela região da Ásia.
Ora, os judeus, oriundos da Palestina, são semitas. Acontece que os palestinos também o são, assim como outros povos da região. Mas no século XIX, para combater as hostilidades que estavam efetivamente sendo praticadas contra grupos judeus na Europa, foi feita uma apropriação do termo semita em chave exclusivista, para se designar apenas os contingentes judeus. Portanto, o antissemitismo na Europa era a hostilidade contra os contingentes semitas que viviam na Europa – os judeus. Mas os semitas não se reduzem ao povo judeu, eles são povos tradicionalmente associados a esta figura tanákhica/bíblica, que é a figura de Sem. O povo palestino, assim como os povos tradicionais da região, é fundamentalmente semita. A língua hebraica é tão semita quanto a língua árabe, de sorte que, insisto, as maiores e mais brutais manifestações de antissemitismo nos dias atuais são aqueles perpetradas dia e noite pelo “estado” genocida de “israel” contra a população palestina.
Notícias em destaque
“Gaza no Coração” está na semifinal do Prêmio Jabuti Acadêmico: “a solidariedade é o grande tema do livro”, diz organizador
Na última segunda-feira (14), a Câmara Brasileira do Livro (CBL) anunciou, [...]
LER MATÉRIAEntrevista: “israel” é o maior promotor de antissemitismo na atualidade, diz pesquisador
Já está em pré-venda o livro “A questão palestina: a nervura religiosa da [...]
LER MATÉRIANetanyahu não é a causa do genocídio em Gaza. A causa é o sionismo
Abed Abou Shhadeh* Uma reportagem extensa publicada recentemente no New [...]
LER MATÉRIAEx-porta-vozes de Biden e Obama lucram com genocídio em Gaza
Por Jack Poulson* Uma empresa mercenária envolvida em graves abusos em Gaza [...]
LER MATÉRIA“Israel está cometendo genocídio contra o povo palestino”, admite professor israelense estudioso do holocausto euro-judeu
Por Omer Bartov* Um mês após o ataque do Hamas a Israel, em 7 de outubro de [...]
LER MATÉRIA“israel” nuclearizado, a África do Sul do Apartheid e o “acordo com o diabo”
Por Alex de Waal* Israel obteve armas nucleares de forma ilícita, inclusive [...]
LER MATÉRIA