A nova posição geopolítica brasileira, religião e ideologia na visão de Ashjan Sadique Adi
Em entrevista à FEPAL, doutoranda da USP analisa a Questão Palestina no atual contexto nacional
24/01/2019Esta semana, a Arábia Saudita descredenciou 33 dos 58 frigoríficos brasileiros habilitados para exportação de carne de frango para o país. A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) alegou que as sanções têm razões técnicas, mas muita gente interpretou a medida como uma retaliação ao governo brasileiro pela intenção de transferir a embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.
A medida – anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante campanha e reafirmada em visita recente do primeiro ministro israelense ao país – não encontra amparo na comunidade internacional e vai contra a tradição diplomática brasileira. A parte oriental da cidade é reconhecida pelo Conselho de Segurança da ONU como palestina.
A rejeição global à posição adotada até então somente por Estados Unidos e Guatemala, as inúmeras manifestações contrárias de autoridades e as recentes sanções comerciais têm pressionado o governo a recuar da decisão. Também esta semana, em seu primeiro pronunciamento oficial no Conselho de Segurança da ONU desde a posse de Bolsonaro, o embaixador Frederico Meyer defendeu a “solução de dois Estados”.
O Coletivo de Pesquisadores sobre Oriente Médio e Palestina foi uma das entidades brasileiras a lançar uma nota de repúdio à possível transferência. A FEPAL falou com uma de suas integrantes, Ashjan Sadique Adi, sobre motivações do governo, mudanças diplomáticas, a nova posição geopolítica nacional e o impacto que essa aproximação com Israel e EUA pode trazer para a causa palestina.
O Oriente Médio a partir do Brasil
Filha de pai e mãe palestinos, Ashjan é doutoranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto). Pesquisadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (FFCLRP – USP), foi professora de Psicologia Social na Faculdade São Francisco de Barreiras (FASB/BA) e da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Desde muito nova, Ashjan é ligada à cultura árabe, mas foi em 2017, após seu primo de 16 anos ser preso por soldados israelenses, que ela decidiu transformar seu interesse em luta. Indignada, passou a coletar informações para uma denúncia sobre as condições desumanas dentro das prisões de Israel. Seu “dossiê” serviu de base para uma matéria publicada pelo jornal A Nova Democracia.
“Este fato foi tão importante para mim que me inspirou na elaboração de meu projeto de doutorado e nas atividades políticas em geral. Resolvi conciliar a questão política, profissional e pessoal. Sempre fui envolvida nas diferentes lutas sociais, mas desde então, resolvi me dedicar à luta palestina”, conta.
O coletivo de pesquisadores que Ashjan integra, fundado pelo professor Fábio Bacila Sahd (UFMA), é formado por mais de 30 acadêmicos de diferentes instituições em vários pontos do Brasil. Além de ter planos de expandir a atuação, o grupo lançará este ano o livro O Oriente Médio pesquisado a partir do Brasil: reflexões acadêmicas, marginais e críticas.
Entrevista com Ashjan Sadique Adi
Nem a ONU nem a comunidade internacional – à exceção dos EUA e da Guatemala – reconhecem Jerusalém como a capital de Israel. Qual é a mensagem que o atual governo brasileiro passa para o mundo ao se alinhar a essas duas nações?
Aparentemente, o atual governo está dizendo que o Brasil, enquanto principal potência da América do Sul e uma das principais da América Latina, está fazendo uma política de aliança com os Estados Unidos. Além disso, a reordenação geopolítica pós-Segunda Guerra, em que os EUA se tornam potência hegemônica, traz como consequência a fundação do Estado de Israel, que, por sua vez, torna-se o principal aliado dos EUA no Oriente Médio, sobretudo em função das reservas de petróleo lá existentes. Ou seja, Bolsonaro e seu governo estão demonstrando que se alinham aos EUA e consequentemente a Israel.
Outro ponto a considerar refere-se aos grupos apoiadores de sua campanha vinculados à bancada e às igrejas evangélicas, como a Igreja Universal, de Edir Macedo, proprietário do Grupo Record. Junta assim uma questão geopolítica com a atitude de agradar boa parte de seus apoiadores e eleitores. As igrejas evangélicas também apoiam Israel por considerá-la “terra prometida” e o local em que Jesus retornará.
De toda forma, o que mais importa em termos de política externa é a mensagem de alinhamento a EUA e Israel por motivações político-estratégicas ligadas à militarização, segurança, tecnologia e petróleo. Tudo isso, consequentemente, leva a uma mudança na configuração do Brasil em termos de relações internacionais e de continuidade de uma estrutura governamental de caráter neoliberal, pró-privatização, de menor interferência estatal na macropolítica, já iniciada no governo Temer. A pretensão é vender nossas maiores riquezas para os estrangeiros, beneficiando alguns grupos da elite brasileira em prejuízo da maior parte da população.
Há algo na Constituição Brasileira de 1988 que desautorize uma decisão como essa?
Sim, sobretudo no Art. 4º, que trata das relações internacionais. Prevalência dos direitos humanos (II), Autodeterminação dos povos (III), Igualdade entre os Estados (V), Defesa da paz (VI), Solução pacífica dos conflitos (VII), Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (IX).
Ao anunciar essa possibilidade, Bolsonaro e seu governo interferem na luta do povo palestino pela sua autodeterminação e soberania, sendo cúmplice do desrespeito à resolução 181 da ONU referente à partilha da Palestina em dois estados – um palestino e um judeu – e de Jerusalém como território sob administração das Nações Unidas.
Considerando que a Palestina vive uma situação de conflito há 70 anos, desde a fundação de Israel, a possibilidade da transferência não se alinha à defesa da paz, à solução pacífica dos conflitos e à cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Pelo contrário, tensionará ainda mais uma região e sua população já massacrada pela guerra e pelo conflito. Por isso, repudiamos de forma veemente a transferência da embaixada.
Em 1980, em resposta à tentativa israelense de anexar Jerusalém oriental, a resolução 476 do Conselho de Segurança da ONU “confirma que toda ação de Israel, a potência ocupante, que tenta alterar o caráter e o status de Jerusalém não possui validade legal”. Ou seja, segundo a ONU, Jerusalém oriental é território ocupado por Israel e sua restituição aos palestinos constitui reivindicação legítima, apoiada notadamente pela resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU.
O anúncio da transferência da embaixada não fere apenas a Constituição Brasileira, mas também as resoluções da ONU, o Direito Internacional, os Direitos Humanos, a Convenção de Genebra, entre outras, segundo as quais o destino da cidade sagrada para as três religiões monoteístas deve ser decidido em negociações entre Israel e Palestina. É uma possibilidade que vai de encontro à opinião pública internacional.
A despeito de toda polêmica (e não pretendo minimizar esta questão), a possível transferência é um ataque simbólico, um elemento adicional na instabilidade histórica da Palestina, e o presidente pode até não faze-la. O maior agravante deste contexto são os possíveis acordos políticos e econômicos com Israel. É com esses que devemos nos atentar, sobretudo.
A posição histórica do Brasil sobre o assunto, alinhada às resoluções das Nações Unidas, tem sido questionada por segmentos conservadores. Essa tradição diplomática em defesa da autodeterminação dos povos e da resolução pacífica dos conflitos tem algum tipo de viés partidário ou ideológico?
Não acredito que a tradição do Brasil em defesa da autodeterminação dos povos e da resolução pacífica dos conflitos se originou diretamente de um viés político-partidário. Agora, ideológico, no sentido de fundamentos de ideias, qualquer posicionamento é. Mas, neste caso, estamos falando de um posicionamento ideológico voltado a uma sociedade mais justa, a um mundo mais igualitário e a nações mais livres. A Causa Palestina não resume a um posicionamento de esquerda ou de direita, mas à defesa de um mundo melhor, de vidas melhores.
A crítica dos segmentos conservadores a esse posicionamento histórico tem relação com os interesses de classes que estes defendem. No caso do atual governo e seus apoiadores, estão ligados a países como EUA e Israel e suas políticas neoliberais, militares, armamentistas, que vão de encontro às políticas de países ditos progressistas, que possuem como foco educação, saúde, trabalho e políticas públicas de melhorias para a população.
Na democracia representativa e no sistema capitalista em que vivemos, não há nada sem viés ideológico, seja individual ou coletivamente. Temos ideias em que acreditamos e as promovemos. A questão é pensar a que estas ideias se direcionam, se à transformação ou à manutenção da sociedade.
Você mesmo citou que há uma influência dos segmentos evangélicos sobre essa pretensão do governo de transferir a embaixada. Até que ponto esse tipo de fundamentalismo religioso pode interferir na política externa do país?
Pelos fatos que observo, esta pressão doméstica da bancada evangélica não será suficiente em relação às pressões externas e internacionais, sobretudo dos países árabes exportadores da carne halal, que levou o Brasil a um superávit de 7 bilhões de dólares recentemente. Neste sentido, a promessa de campanha de Bolsonaro pagará um alto preço, seja literal e diplomaticamente.
A legitimidade de qualquer estado por motivo de promessa divina é desconhecida pelo direito internacional, portanto, as considerações religiosas utilizadas para fundamentar o estado de Israel são inválidas. É extremamente contraditório, inclusive, que Israel cometa todas as atrocidades contra o povo palestino, desde 1947, baseado em fundamentos bíblicos.
O que aproxima o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, do presidente Jair Bolsonaro? E que tipo de consequência essa relação pode trazer para a luta do povo palestino por reconhecimento e autonomia?
Tanto Bolsonaro quanto Netanyahu são frutos do militarismo. E o que eles possuem em comum são seus alinhamentos político-militares, que versam no interesse em negociar acordos de cooperação tecnológica e militar nas áreas de segurança, agricultura, pesca, entre outras. Se aproximam também por interesses religiosos, visando adeptos de seus posicionamentos. Tanto o sionismo quanto o neopentecostalismo se fundamentam em afirmações sobre Israel baseadas em interpretações bíblicas sem nenhuma comprovação.
Em relação às consequências disso para a luta do povo palestino, considerando que o Brasil é um ator emergente no campo das relações internacionais e da geopolítica sul-americana, ele pode influenciar alguns países em relação a pautas da ONU referentes à Palestina e sua busca por autodeterminação e soberania. É lamentável considerar essa possibilidade, mas ela existe em nosso atual contexto.
Netanyahu recentemente disse que não é uma questão de “se”, mas de “quando” o Brasil vai transferir a embaixada. Você acredita que ainda há alguma chance de o governo brasileiro mudar de ideia?
Acredito que há grandes chances de o atual governo mudar de ideia. Existem pressões externas, como a das Nações Unidas e da Liga Árabe, e pressões internas da própria equipe de governo, como a do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e do ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz. Esta questão divide o governo, gera dissidências entre os militares, desafia o campo diplomático brasileiro e isola o país da comunidade internacional.
Sabemos que o anúncio da transferência foi uma estratégia eleitoreira para angariar votos de eleitores e financiadores evangélicos da campanha de Bolsonaro. Entre prometê-la e cumpri-la, há um caminho complexo, que pode trazer sérias consequências ao Brasil.
Esperamos que princípios de fé ligados a esse anseio pela transferência não devem superar princípios políticos e humanitários. A influência da bancada evangélica no congresso não deve ser determinante em um país laico como o nosso.
Diante de um cenário político internacional de tantas ameaças e incertezas, e de polarização, o que você acha que a sociedade civil – especialmente a brasileira – pode fazer para que causas legítimas, como a Palestina, possam avançar?
Acredito que parte da conscientização e da informação. Vivemos uma guerra discursiva e precisamos utilizar da melhor forma possível os meios para disseminar nossas ideias. Promover a nossa luta e sua compreensão, através da articulação acadêmica, de grupos de pesquisa, de movimentos sociais, de federações como a FEPAL e outras organizações que podem produzir artigos, livros, notas, depoimentos, entrevistas etc., tendo como grande meio as mídias e redes sociais, os blogs, que podemos utilizar contra uma mídia hegemônica, que geralmente apresenta uma versão única e tendenciosa dos fatos. Temos que organizar eventos – acadêmicos, políticos, culturais – que promovam a causa. Devemos lembrar continuamente episódios importantes da luta palestina, chamando as pessoas para conhecê-la. Precisamos ocupar espaços e promover lugares de fala onde a Palestina seja ouvida.
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