Por que a ONU não declara fome em Gaza?
Considerações políticas e técnicas por pressão do domínio dos EUA dentro da ONU não podem mais servir de desculpa para ignorar a inanição dos palestinos.

Alaa Al-Najjar lamenta a morte de seu bebê de três meses, Yehia, que faleceu devido à desnutrição no Hospital Nasser, em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, em 20 de julho de 2025 [Hatem Khaled/Reuters].
Por Moncef Khane*
Em 9 de julho de 2024, nada menos que 11 especialistas com mandato do Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiram um alerta urgente sobre a fome em Gaza.
“Declaramos que a campanha de fome intencional e direcionada de Israel contra o povo palestino é uma forma de violência genocida e resultou em fome em toda Gaza. Conclamamos a comunidade internacional a priorizar a entrega de ajuda humanitária por terra por todos os meios necessários, acabar com o cerco israelense e estabelecer um cessar-fogo”, diz o comunicado.
Entre os especialistas estavam Michael Fakhri, relator especial sobre o direito à alimentação; Pedro Arrojo-Agudo, relator especial sobre os direitos humanos à água potável e ao saneamento; e Francesca Albanese, relatora especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967. Para eles, a morte de crianças por inanição, apesar das tentativas de tratamento médico na região central de Gaza, não deixava espaço para dúvidas.
Embora “fome” seja geralmente entendida como uma grave escassez de nutrição que leva à inanição e morte de um grupo ou população, não há uma definição universalmente aceita do termo no direito internacional.
No entanto, em 2004, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) desenvolveu a Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC), uma escala humanitária quantitativa de cinco níveis para mapear a insegurança alimentar de uma população.
O objetivo desse instrumento de avaliação é impulsionar ações coletivas quando a insegurança alimentar é identificada, evitando que a situação chegue ao Nível 5 da escala IPC — quando a fome é oficialmente confirmada e declarada. A ferramenta tem sido usada pela FAO, pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) e seus parceiros como um instrumento científico e baseado em dados há 20 anos.
Os critérios quantificáveis da IPC para declarar fome são direta e brutalmente claros:
- 20% ou mais das famílias em uma área enfrentam escassez extrema de alimentos e têm capacidade limitada de lidar com a situação;
- a desnutrição aguda entre crianças excede 30%;
- e a taxa de mortalidade supera duas pessoas por 10 mil por dia.
Quando esses três critérios são atendidos, a “fome” precisa ser declarada. Embora essa declaração não acione obrigações legais ou tratados, ela é um sinal político importante para forçar uma ação humanitária internacional.
Se os especialistas citados conseguiram concluir, em uníssono e há mais de um ano, que havia fome na Faixa de Gaza sitiada, é difícil compreender por que as entidades competentes da ONU e seus dirigentes ainda não chegaram à mesma conclusão até julho deste ano, após mais de quatro meses de um cerco medieval.
Na era da informação em tempo real, transmitida para celulares em todo o mundo, a realidade de uma insegurança alimentar fatal é gritante e inaceitável. Imagens de corpos esqueléticos, reminiscentes das que foram tiradas nos campos de concentração nazistas, contam a história macabra da realidade em Gaza, bloqueada pelas forças de ocupação israelenses intransigentes.
E, ainda assim, mesmo diante dos alertas da Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos (UNRWA), emitidos em 20 de julho, de que um milhão de crianças em Gaza estão em risco de morrer de fome, o termo “fome” ainda não foi oficialmente declarado.
À primeira vista, a explicação para a não declaração de “fome” em Gaza é a alegada falta dos dados necessários exigidos pelo protocolo da IPC. Isso pode ser verdade, já que Israel impede o acesso de jornalistas e de alguns trabalhadores humanitários à Faixa de Gaza. Assim, os analistas da IPC não têm a capacidade de coletar dados primários, como fazem nas outras cerca de 30 situações que monitoram. Mas quando as evidências físicas são visíveis, e há dados confiáveis disponíveis, as considerações humanitárias deveriam prevalecer sobre exigências técnicas.
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Contudo, na cultura atual do sistema da ONU — subjugada por uma administração dos EUA hostil —, considerações políticas se sobrepõem ao dever moral e às obrigações profissionais. Aqueles no comando sabem o que é certo (ou ao menos espera-se que saibam) — e também o que pode ser fatal para suas carreiras e reputações.
Os ataques ad hominem e sanções do governo dos EUA contra o Procurador-Chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, e contra a relatora especial da ONU, Francesca Albanese, são um lembrete vívido de que esses cargos não são isentos de riscos. No caso de Albanese, seu mandato nem sequer é remunerado, já que ela o exerce de forma pro bono, o que torna sua firmeza e coragem ainda mais exemplares.
É certo que os chefes executivos da ONU, como o secretário-geral António Guterres, enfrentam cálculos mais complexos — sendo a possibilidade de retaliação por parte de potências como os EUA o principal fator. Como diz o ditado, “o dinheiro fala”, e os EUA são o maior financiador individual do sistema da ONU.
Mas agora que o Congresso dos EUA aprovou um projeto sem precedentes para cortar o financiamento ao sistema das Nações Unidas, deixar de fazer o que é certo para proteger as agências da ONU da ira de Washington deixou de ser uma desculpa aceitável — se é que um dia foi.
É importante lembrar que o Estatuto do TPI estabelece que provocar a fome de civis constitui crime de guerra quando cometido em conflitos armados internacionais. O cerco total a Gaza desde 2 de março, que resulta na fome da população civil — principalmente bebês e crianças —, se encaixa perfeitamente no escopo do Artigo 8 do Estatuto, sobretudo porque resulta de uma política deliberada e declarada de negação de ajuda humanitária por meses.
Nessa fome fabricada pelo homem, os palestinos estão morrendo de inanição em meio ao silêncio ensurdecedor do mundo, enquanto toneladas de alimentos apodrecem no lado egípcio da fronteira aguardando permissão para entrar em Gaza. Tropas israelenses e mercenários estrangeiros contratados pela Gaza Humanitarian Foundation já mataram mais de 900 palestinos que buscavam ajuda em supostos pontos de distribuição humanitária. Cerca de 90 mil mulheres e crianças precisam de tratamento urgente contra a desnutrição, segundo o PMA. No dia 20 de julho, 19 pessoas morreram de fome em um único dia, informou o Ministério da Saúde de Gaza. E o pior ainda está por vir.
Michael Fakhri, Pedro Arrojo-Agudo e Francesca Albanese disseram isso há um ano — já passou da hora de a ONU declarar oficialmente que há fome em Gaza.
* Moncef Khane é um ex-funcionário das Nações Unidas, com uma carreira de mais de 30 anos nas áreas de direitos humanos, assuntos políticos, missões de paz e missões políticas especiais, bem como na Assembleia Geral e no Conselho Econômico e Social, além de ter atuado no Gabinete Executivo do Secretário-Geral Kofi Annan. Artigo publicado na Al Jazeera em 21/07/2025.
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