O vídeo de Trump para o “resort” Gaza: extermínio, limpeza étnica, jogatina e prostituição

27/02/2025
Por: Guilherme Curi

A bizarrice atrai atenção. Portanto, por trás do show de horrores e do espetáculo vulgar e genocidário, é possível ler também uma tentativa desesperada do império estadunidense em declínio de chamar a atenção e pautar o debate

Trecho do vídeo de Trump, apresentando-o ao lado de Benjamin Netanyahu

O atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou na manhã de quarta-feira (26) um vídeo produzido por Inteligência Artificial com imagens de um delírio genocidário que ele chama “resort em Gaza”. De antemão, é necessário afirmar em alto e bom tom: nada nesta nova ação midiática é por acaso. O vídeo escancara o plano de Trump para Gaza: limpeza étnica, jogatina, exploração, prostituição e ganância. Mas, para além dos fatos explícitos e estéticos observados, serão pontuadas cinco questões que o vídeo aciona, resultado do que a bibliografia atual denomina de dinâmicas do imperialismo e colonialismo da atual era digital e da midiatização profunda.

Primeiro, o fato de ser totalmente produzido por IA é obviamente uma ode às empresas de tecnologias da comunicação e informação estadunidenses que financiaram a campanha de Trump. Estima-se que foram injetados e investidos mais de dois bilhões de dólares por Mark Zuckerberg, da Meta (Facebook, Instagram e WhastApp), e pelo zilionário Elon Musk (dos satélites Starlink ao X), que aparece duas vezes no vídeo, os assim chamados pelo jornal britânico The Guardian de “gangsters digitais”. Obviamente, o mercado de dados e fluxos digitais, coordenado por estas grandes corporações de tecnologia, buscam, a todo o tempo, exercer o domínio sobre a economia e a cultura global, a partir do controle e da exploração das mentes dos usuários. Trata-se, portanto, de uma guerra ideológica que procura desmoralizar pessoas de uma determinada região-alvo. Um ataque imperialista e colonial.

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Aqui, o segundo ponto emerge nesta empreitada sanguinária. O objetivo é informar o inimigo que a estratégia é clara e direta. Os limites morais, éticos e o compromisso com a verdade já foram ultrapassados há um bom tempo. Trata-se de um recado cristalino e um insulto agressivo para os árabes em geral e aos palestinos em particular. Não há limites! “Nós somos os criadores de um novo mundo”, mesmo que isso custe a vida de milhões de pessoas inocentes e a contínua, brutal e ultraviolenta invasão de terras do território palestino desde a invenção sionista no final do século XIX.

Terceiro, ainda que o verniz estético da IA remeta a novidades, a velha tática de estereotipar os árabes se faz mais uma vez presente. Sobre isso, o intelectual árabe-estadunidense Jack Shaheen já havia comprovado como Hollywood distorceu a imagem dos árabes ao longo dos anos. Após a análise de quase mil filmes produzidos no século XX, Shahheen comprovou que o estereótipo do homem árabe foi construído a partir da imagem de um ser não civilizado, fanático, terrorista, caracterizado como bandido, selvagem e nômade, ou seja, sem pertencimento à sua terra. Já a mulher é representada em papeis exóticos e erotizados, como as dançarinas que aparecem no vídeo. Menos de cinco por cento dos papeis nos filmes analisados retratam o árabe como “pessoas normais”. O maniqueísmo, a dualidade entre o bem e mal, neste novo vídeo, é posto em prática mais uma vez, naquilo que um dos mais importantes intelectuais palestinos, Edward Said, denomina de uma fronteira fixa entre “nós e eles. Ainda, no seminal livro “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, Said nos auxilia nesta compreensão ao afirmar que a noção de Oriente construída e reproduzida massivamente pelas diferentes mídias hegemônicas é estruturada a partir de “potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação”.

Captura de tela de trecho do vídeo de Trump, em que ele aparece dançando com uma mulher em Gaza

Neste sentido, o quarto ponto é o fato da palavra liberdade, aliada ao discurso de ostentação e do sucesso, mais uma vez ser acionada. Uma pergunta simples seria necessária para resolver este impasse: Já não ouvimos isso nas empreitadas imperialistas bélicas estadunidenses no Panamá, Iraque, Afeganistão, Síria, Cuba e em todos os golpes militares nos países latino-americanos, incluindo Brasil, Argentina, Chile e Uruguai? A resposta parece óbvia.

Por fim, o quinto ponto destacado é a ironia e a brutalidade mascarada no vídeo, típicas, por exemplo, da propaganda nazista de Hitler. Não bastasse o genocídio em curso contra o povo palestino ser o primeiro transmitido em tempo real, com bilhões de pessoas presenciando o assassinato contínuo de dezenas de milhares de mulheres e crianças, a publicidade caricatural e a personificação infantil de Trump são acionadas. O primeiro frame do maligno comercial é a estátua dourada de Trump, que remete a um populismo barato e vulgar, seguido de uma chuva de notas de dólares sobre Musk, referência à cultura capitalista alegadamente meritocrata.  Uma espécie de antessala para, então, surgir na tela o delinquente que virou presidente estadunidense ao lado do carniceiro sionista Netanyahu, ambos sentados com drinks ao lado de uma piscina, quando mais apropriado seria ela estar cheia de sangue e corpos estraçalhados pelo exército israelense.

A bizarrice atrai atenção. Portanto, por trás do show de horrores e do espetáculo vulgar e genocidário, é possível ler também uma tentativa desesperada do império estadunidense em declínio de chamar a atenção e pautar o debate. Infelizmente, é preciso muito estômago para estar atento. Portanto, aos que lerem este artigo feito a toque de caixa, como resposta imediata a mais um ataque midiático global, compartilhem essas informações e suas reflexões, para que, com elas, contribuamos para o fim da tentativa de solução final na Palestina. Depois dela, não saberemos onde mais.

Guilherme Curi é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e mestre em Sociologia pela University College Dublin, bem como pesquisador CNPq/PDJ do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais e autor do livro "O Mahjar é aqui: a comunicação contra-hegemônica dos intelectuais árabe-brasileiros" (Ed. UFGM).