Apartheid na Palestina: um século de luta contra o racismo e o colonialismo

26/04/2021
Por: Moara Assis Crivelente

Em um clássico da literatura árabe e palestina, A Vida Secreta de Said, O Pessotimista, Emile Habibi narrava, no início dos anos 1970, em forma real-ficcional, o destino imposto pelo governo israelense aos palestinos que lograram permanecer ou, como Said, retornar clandestinamente, após 1948, ao que restou dos seus lares e vilas, cujos nomes iam sendo trocados por nomes em hebraico. Naquela e em tantas obras, panfletos e posições políticas ultrajadas pelo despojo da própria história da Palestina pelo movimento sionista, a correlação entre as questões de classe, raciais, coloniais e geopolíticas não podiam ser mais evidentes.[1] Assim também se evidencia a correlação entre esses fatores na caracterização do regime israelense como um de apartheid.

Tomando mais corpo nos últimos anos, não é recente o exame da questão nacional, colonial e racial na denúncia da implementação do sionismo na Palestina, cada vez mais descrita pelas categorias colonialismo de assentamento e apartheid. Não sem reação, porém, dos que insistem em classificar o sionismo como um movimento cultural, de emancipação judaica ou até mesmo de libertação nacional, ainda que a realidade concreta na Palestina evidencie que o que se implementa é a subjugação, o despojo e a eliminação de outro povo. Deste povo, o direito à autodeterminação já era de fato negado e passa a ser também abolido por lei —para todos os efeitos, internacionalmente ilegítima— com a aprovação da Lei Básica Israel: Estado-Nação do Povo Judeu.[2] Entretanto, o direito à autodeterminação, consolidado no âmbito do direito internacional através das lutas dos povos, é um pilar da Organização das Nações Unidas (ONU).

As diversas forças palestinas, mobilizadas ao longo de um século de resistência e organizadas em 1964 na OLP, a Organização para a Libertação da Palestina, denunciavam desde o início as práticas racistas e colonialistas de um movimento que os expulsava de suas terras, eliminava seus empregos e comércios e buscava apagar a sua história. Até mesmo comissões de inquérito enviadas pelo Mandato Britânico (1920-1948) para averiguar as causas das tensões dos anos 1920 e 1930 entre as comunidades palestinas e as de recém-chegados reconheciam que a imigração massiva promovida pelo movimento sionista e a alienação da população palestina de suas terras e empregos continuariam alimentando conflitos e causando problemas para a potência mandatada.[3] A destituição palestina e a criação de condições socioeconômicas insustentáveis foi e continua sendo a chave da política demográfica racista que continua sendo implementada, a partir de 1948, pelos sucessivos governos de Israel. Não faltam citações dos principais líderes para demonstrar que esta era e ainda é a intenção —são apenas as mais famosas delas aquelas retiradas dos registros do líder do chamado sionismo político, Theodor Herzl.

Em um regime colonial, a alienação da população nativa de suas terras e seus meios de produção e subsistência é chave. Na Palestina, a intenção era despojar os nativos e empurrá-los a emigrar para países vizinhos, e negar a existência da identidade nacional palestina foi tática fundamental. Enquanto o movimento sionista não dispunha das milícias ou da mão-de-obra suficiente para expulsar os palestinos de suas terras ou trabalhá-las, a política era comprar terras de senhores estrangeiros e das elites, enquanto os palestinos que as cultivavam adotaram a posição resoluta de se negar a entregá-las, consolidando o que já era uma forte consciência nacional. O contínuo respaldo britânico ao movimento sionista, porém, dava legitimidade à expansão capitalista na Palestina através da colonização. As condições do camponês palestino deterioravam-se rapidamente, enquanto a Grã-Bretanha seguia promovendo a institucionalização sionista na Palestina.

Em 1929, a Agência Judaica foi fundada para realizar tarefas administrativas e a Associação para a Colonização Judaica da Palestina (PICA) foi também promovida pelo Barão de Rothschild, que comprava terras de senhores feudais e expulsava os camponeses, muitos recontratados para trabalhar enquanto a mão-de-obra palestina ainda não podia ser substituída. De novo, aqui, Herzl é apenas um dos mais citados defendendo a política de expropriar as terras e negar empregos, empurrando a população empobrecida para lá das fronteiras.

Pouco depois do início da primeira fase de imigração judaica, nos anos 1880, o Sexto Congresso da Organização Mundial Sionista criou o Fundo Nacional Judaico (FNJ) em 1903 para, através da compra, promover o que seria chamada de “redenção da terra”, que passaria do uso árabe ao judaico —assim dando o tom messiânico e exclusivista ao movimento. Grande parte dos defensores da colonização sionista da Palestina alega que as terras assentadas antes da criação do Estado de Israel foram compradas pelo FNJ. Entretanto, levantamentos em diversas fontes mostram que apenas cerca de 7% das terras foram de fato compradas de agricultores palestinos. Note-se ainda que entre a população originária já havia também judeus palestinos —em 1882, a população da Palestina era de cerca de 80% muçulmanos, 10% cristãos e 5 a 7% judeus.[4]

A adoção da Resolução 181 pela Assembleia Geral da ONU, em 1947, recomendaria a Partilha da Palestina numa proporção já desigual, como se tem reiterado, para o estabelecimento de um Estado judaico em mais de metade da Palestina, quando judeus eram cerca de um terço da população e tinham 7% das terras. Tal discrepância ainda seria agravada na guerra de 1948, quando as milícias sionistas e forças do nascente Estado de Israel capturaram mais territórios, o que ficou demarcado pela chamada Linha Verde de 1949. Mas em essência, a Resolução 181, assim como o Mandato Britânico da Liga das Nações, legitimava os intentos do movimento sionista e contrariava a vontade da população árabe-palestina —que já enxergava no plano a consolidação da colonização da Palestina— e até mesmo de parte do movimento sionista, que almejava expandir a porção destinada ao Estado judaico. Assim, em 1948, a potência administradora retirou-se abruptamente, deixando aos árabes e aos sionistas a definição da disputa, ciente de que o movimento e as milícias sionistas estavam bem equipados para concluir, através do massacre e da expulsão dos palestinos, ou a sua subjugação a um novo regime, a consolidação do Estado de Israel.

De 1948 a 1966 vigorou um regime militar em Israel para a população palestina, substituído por um governo civil, enquanto mais de duas centenas de palestinos foram incluídos numa lista para continuar sob normas militares, de exceção, por seus ideais árabe-nacionalistas “extremos”.[5] Assim continuaria sendo gerida a resistência palestina ao esquecimento e à submissão, em Israel e de forma potencializada, nos territórios militarmente ocupados na guerra de 1967, a Cisjordânia, inclusive Jerusalém, e a Faixa de Gaza. Para isso foram úteis os regulamentos de emergência e ordens militares herdadas do Mandato Britânico e gradualmente tornadas leis no quadro jurídico israelense para reprimir a luta palestina por libertação nacional, por exemplo, através do confisco de terras, a deportação e as detenções arbitrárias.

Racismo e apartheid

Ainda ficaria mais evidente o que já era denunciado pelas forças palestinas e por correntes judaicas ou israelenses progressistas como a subjugação de todo um povo e, em 1975, a resolução 3379 da Assembleia Geral da ONU considerou o sionismo um movimento racista. No novo contexto da geopolítica mundial, em 1991, a resolução foi revogada, mas é contínua a denúncia do regime israelense como um de apartheid, assente na política discriminatória e racista e definido como um crime contra a humanidade desde a adoção da Convenção sobre a Eliminação e Punição do Crime de Apartheid, em 1973.[6] Embora referenciado no regime imposto aos sul-africanos entre 1948 e os anos 1990, o apartheid não é exclusivo àquele contexto. Em 2001, a Declaração e Programa de Ação de Durban foi adotada na Conferência Mundial contra a Discriminação Racial, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância, fazendo menção à Palestina. Passados 20 anos, a conclusão do processo de paz a que o texto apela não podia parecer mais distante.

Em 2009, um estudo publicado pelo Conselho Sul-Africano de Pesquisa em Ciências Humanas seria um dos primeiros estruturantes da classificação do regime israelense no território palestino ocupado como um de apartheid.[7] O regime passa então a ser examinado mais sistematicamente sob esta lente, no âmbito do direito internacional.[8] Sucessivos relatores especiais da ONU para a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados da Palestina, como John Dugard e Richard Falk, passam a alertar para a consolidação deste regime em seus relatórios. O atual relator, Michael Lynk, afirmou em 2019 e em 2020, diante dos planos anexionistas do Governo de Israel, que a ocupação militar sustenta-se em políticas condizentes com regimes colonialistas e de apartheid. Note-se, entretanto, que desde o primeiro ano de ocupação o Governo de Israel emite autorizações para a construção de colônias na Palestina, a começar por Al-Khalil / Hebron e Al-Quds / Jerusalém,[9] passando a incentivar ativamente a prática com a política também duradoura de expropriação e confisco de terras palestinas e a oferta de subsídios e infraestrutura exclusiva para colonos, inclusive a oferta de serviços, como o abastecimento de água também subtraída dos palestinos.[10] Sendo a transferência de população e a colonização de território que só pode ser ocupado temporariamente e “por necessidade militar” —de si um conceito problemático— uma violação flagrante do direito internacional humanitário, especialmente a IV Convenção de Genebra, pode-se concluir que a ocupação é ilegal desde o princípio, além de sempre imoral sob a perspectiva anticolonial, contrária à guerra e humanista.

Este é um resumo do quadro persistente da colonização da Palestina, retroalimentado pelas políticas racistas que buscam controlar, reprimir e eliminar fisicamente a população palestina, seja através de reiterados massacres, seja criando condições insustentáveis de vida através de uma ampla matriz de políticas e leis discriminatórias e opressoras. Mas o processo é longo porque a resistência palestina é persistente. Ainda neste século 21, o despojo e a repressão são as principais políticas do regime israelense de ocupação militar, apartheid e colonização aplicada à população palestina, afetando quem vive na Palestina ocupada, em Israel, no refúgio e na diáspora —inclusive no impedimento à implementação do direito dos refugiados a retornar. Por isso, a revisão conceitual, jurídica e política é importante no exame que visa à transformação da situação na Palestina, à responsabilização dos encarregados do regime israelense pelas sistemáticas violações do direito internacional e à implementação do direito do povo palestino à autodeterminação nacional, para mitigar a catastrófica consequência de um século de opressão e colonização.

[1] Discursos e textos de lideranças de vários movimentos e partidos, inclusive do Partido Comunista de Israel, como Meir Vilner e Emile Touma, e antes de 1948, do Partido Comunista da Palestina, denunciavam a ligação intrínseca entre as políticas de classe, racistas e colonialistas do movimento sionista e o imperialismo britânico e, logo, o estadunidense. Autores como Musa Budeiri, Joel Benin, Elia Zureik, Sibri Jiryis, Nur Masalha, Gerson Shafir, Avi Shlaim, Ran Greenstein, Ghassan Kanafani, Edward Said e Ilan Pappé são referências importantes na historicização dessas políticas. Estes autores e diversos relatórios da ONU são as principais fontes dos dados que aparecem neste texto.

[2] Israel Knesset. Full text of Basic Law: Israel as the Nation State of the Jewish People, 19 de Julho de 2018. <https://knesset.gov.il/spokesman/eng/PR_eng.asp?PRID=13978> [20 de Fevereiro de 2021].

[3] São exemplos a Comissão Shaw, de 1929, e o Relatório Hope-Simpson de 1930, que sugeria a limitação à imigração judaica e à compra de terras devido aos impactos socioeconômicos já verificados na comunidade palestina, que continuariam gerando tensões. O relatório notava que cerca de 30% dos árabes já estava sem terras e que “a exclusão do trabalho árabe da terra comprada pelo Fundo Nacional Judaico […] deve confirmar a crença de que é intenção das autoridades judaicas deslocar a população árabe da Palestina em estágios progressivos”.

[4] A apresentação destas estimativas não significa, de forma alguma, que aqui se adere à narrativa religiosa sobre o conflito, embora este seja o retrato simplório e também útil promovido em alguns meios e por parte dos sionistas. É útil porque serve à apresentação da colonização da Palestina e da opressão do povo palestino como um conflito complexo de fundo simbólico e altamente subjetivo, de difícil “solução”, justificando assim o seu prolongamento e a própria ocupação militar que o sustenta há mais de cinco décadas.

[5] Jewish Telegraphic Agency, Israel Announces Abolishment of Military Administration for Arabs, 8 de novembro de 1966. <www.jta.org/1966/11/08/archive/israel-announces-abolishment-of-military-administration-for-arabs>

[6] Segundo a Convenção sobre o Apatheid (1973), “atos desumanos resultantes das políticas e práticas de apartheid e políticas similares e práticas de segregação e discriminação racial” são crimes internacionais, e o crime de apartheid, que inclui práticas e políticas similares à adotadas no sul africano, é caracterizado por “atos desumanos cometidos com o propósito de estabelecer e manter a dominação de um grupo racial de pessoas sobre qualquer outro grupo racial de pessoas e oprimi-las sistematicamente”, como por exemplo, o assassinato, a tortura, o tratamento desumano e a detenção arbitrária de membros de um grupo racial, a imposição deliberada de condições de vida calculadas para causar destruição física, medidas legislativas que discriminam nos campos políticos, sociais, econômicos e culturais, e medidas que dividem a população em termos raciais com a criação de áreas residenciais para grupos raciais, a proibição de casamentos interraciais, e a perseguição a opositores do apartheid.

[7] Human Sciences Research Center (2009) Occupation, colonialism, apartheid?: a re-assessment of Israel’s practices in the occupied Palestinian territories under international law. <www.hsrc.ac.za/en/research-data/view/4634>

[8] Analogias ao regime sul-africano já eram feitas antes. Uri Davis, por exemplo, escreveu em 1987 o livro Israel: Um Estado de Apartheid. Não havia, porém, um estudo sistemático. Daí a novidade dos realizados a partir de 2009. Em 2017, os professores Richard Falk e Virginia Tilley publicaram um estudo encomendado pela Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental da ONU (ESCWA), elencando que políticas definem o regime israelense como um de apartheid. Embora o relatório tenha causado furor por parte da liderança israelense e sido removido da plataforma, o documento é uma fonte importante e pode ser lido neste link: <https://www.jadaliyya.com/Details/34106>

[9] Division for Palestinian Rights. Israeli Settlements in Gaza and the West Bank (including Jerusalem): Their Nature and Purpose. New York: UN Committee on the Exercise of the Inalienable Rights of the Palestinian People, 1982. <https://unispal.un.org/UNISPAL.NSF/0/B795B2D7FE86DA4885256B5A00666D70>

[10] Entre outros documentos, os relatórios de 2016 do Secretário-Geral da ONU e do chamado Quarteto para o Oriente Médio para o Conselho de Segurança da ONU admitem essas políticas com preocupação pela inviabilização da solução de dois Estados por Israel (A/71/355, p.3; S/2016/595, p.5).

Moara Assis Crivelente Doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro da Direção do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)